Qual o sentido da seleção brasileira de futebol?
Ontem, Brasil e Peru jogaram pela segunda rodada das Eliminatórias Sul-americanas para a Copa do Mundo de 2022, no Qatar. Após fazer dois gols, a seleção peruana foi derrotada pela brasileira pelo placar de 4 x 2. A partida foi em Lima e colocou o Brasil em primeiro lugar no torneio eliminatório. Neymar fez três gols – dois de pênalti – e ultrapassou Ronaldo no número de tentos marcados com a camisa da CBF. Agora ele é o segundo colocado na artilharia, atrás apenas de Pelé.
Eu pergunto: e daí? Quem se importa?
Muita gente. Muita gente.
Pois que se importem e não contem mais com minha audiência para jogos em que a camisa amarela esteja em campo.
Digo isso sem qualquer constrangimento e falo como admirador do sentido do futebol para além do esporte. Já tive o meu quinhão de felicidade com a seleção brasileira em tempos idos. Tinha medo da seleção argentina em 1978. Chorei em 1982. Passei raiva em 1986 e 1990. Pulei em 1994 com meus amigos de faculdade. Fiquei pasmo em 1998 e madruguei em 2002. Até a Copa de 2010 tive meus momentos com a seleção, mas, era uma admiração cada vez mais protocolar, mecânica. E esta condição não sobreviveu a 2013/14, quando sua camisa foi ressignificada como uniforme/símbolo de tudo aquilo que eu não desejo para o Brasil. Além disso, a ascensão de Neymar como ídolo do futebol brasileiro contribuiu enormemente para o meu desinteresse absoluto pelos jogos do Brasil. Sigo um fã devoto de Copas do Mundo, amo os jogos, me divirto horrores com as seleções de pouca tradição, me admiro em ver as grandes forças europeias, cultivo minha simpatia latino-americana mas é só. Acaba a Copa e eu nem lembro mais do jogos.
Talvez seja o neoliberalismo, este agente monetizador de tudo que nos é mais caro e importante. Desde o início dos anos 1990, o futebol, assim como os outros ramos do entretenimento, foi bombado por contingentes massivos de capital, num processo de camarotização crescente, no qual até o Maracanã e todo o seu sentido/significado foi engolfado para que viesse uma “arena Fifa” no seu lugar. Um facelift do mal, um botox na alma da gente. O fato é que o futebol foi se tornando um produto cada vez mais caro, cada vez mais imbuído do objetivo de sustentar o circo em que ele vive. Ingressos caríssimos, planos de TV por assinatura que mostrem os jogos, camisas caríssimas, toda uma estrutura alimenta o monstro que nos faz acreditar que consumir muito nos faz pessoas melhores. O futebol se tornou algo a ser consumido. Não era há até alguns anos atrás, meus caros.
E como consumo, o que o produto futebol nos oferece? Uma seleção nacional com tradição erguida há tempos, sobre os ombros de atletas que não jogavam sob a lógica do futebol como commodity, ou seja, um produto de exportação. Isso significa que hoje há menos identificação com o país, com a nossa realidade. Antes os jogadores treinavam nas mesmas cidades que seus fãs. Estavam mais próximos. Hoje os jovens atletas deixam o Brasil antes de completarem 20 anos de idade, num tempo em que ainda nem temos noção das coisas. Pense: o que você pensava aos 20 que permanece como verdade hoje? Pois é.
Sendo assim, quando não há a identificação, o que sobra no futebol? O neoliberalismo, esperto que é, sabe disso e se vale de todos os artifícios para construir pontes que liguem os multimilionários jogadores aos seus países de origem. Tal processo é especialmente pensado em caso de atletas que têm origem em países pobres. E também há os fãs transnacionais, que torcem por times e seleções de outros lugares, num processo semelhante ao que nos faz torcer pelo herói do filme da Marvel. Ou pelo vilão.
Além disso tudo, há o sentido e a representação. Você se sente representado pelo Neymar? Pelo Roberto Firmino? Eles são ídolos em seus times, numa esfera de existência em que é possível e desejável amar seja quem for que vista a camisa de um clube. Porque o clube é diferente da seleção. Num mundo que prega o derretimento de fronteiras quando conveniente, é possível existir a rivalidade clubística, mas a geográfica vai sendo diluída constantemente. Há cada vez menos espaço para a postura de fazer acreditar que o argentino, o uruguaio, o latino-americano em geral, é inimigo da seleção brasileira, um clássico das transmissões da globo tv, reproduzindo o pensamento alimentado durante a ditadura e pela própria cultura do país que nasceu como patética monarquia em meio a um monte de jovens e briosas repúblicas, lá no século 19.
Futebol é identidade, não dá pra escapar disso. É a sua rua, a sua cidade, o seu grupo de pessoas, que pensam, falam e agem como você. Por isso os campeonatos sobrevivem com mais naturalidade que os torneios de seleções internacionais. A Copa do Mundo ainda é a exceção.
Brasil nas Eliminatórias da Copa? Brasil em qualquer jogo combinado para cumprir datas da Fifa? Brasil jogando contra, sei lá, o Japão num campo inglês?
Não contem comigo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.