Os quarenta anos de “Songs From The Big Chair”
Em fevereiro/março de 1985, eu estava maravilhado com uma mudança profunda na minha vida de adolescente. Aos quatorze anos e meio, finalmente eu não precisaria mais usar uniforme para ir ao colégio. Depois de oito longos anos usando o fardamento composto por camisa bege, calça verde musgo e tênis marrons do Colégio Santo Agostinho, um mundo de grifes como Toulon, Elle et Lui e a maior delas, Company, se descortinava diante dos meus quatro olhos. Tudo era novo, dava a impressão que, a despeito da dureza da trinca Matemática, Física e Química ou da total falta de interesse das garotas por minhas espinhas, aquele ano prometia. E a trilha sonora dele, pelo menos no início, era um mix de canções de “O Passo do Lui”, segundo álbum dos Paralamas, sucessos de Lulu Santos, Sting solo, U2, The Cure, Culture Club e, uma novidade sensacional, “Songs From The Big Chair”, o segundo disco da dupla britânica Tears For Fears. Até então, Curt Smith e Roland Orzabal eram dois ilustres desconhecidos, mesmo que tenham feito certo sucesso por aqui com “Pale Shelter” e “Change”, faixas de seu álbum de estreia, “The Hurting”, de 1983. É que eu não relacionava essas canções, que tocavam mais na Fluminense FM, à dupla que invadira o ano a bordo de um hit dourado, atemporal: “Everybody Wants To Rule The World”, certamente sua canção mais pop e “comercial” até então. E perfeita.
De fato, o segundo álbum dos Tears For Fears marca uma mudança sonora. Sai o pós-punk gélido de “The Hurting”, que também flertava pesado com a eletrônica e entra um pop multidisciplinar, fruto de cerca de um ano de tentativa, erro e acerto em busca de um som que fizesse o Tears For Fears confirmar o sucesso que havia feito. Sim, porque, pelo menos na Inglaterra, a estreia fora bem-sucedida, no sentido de que o fã de música daquele início de anos 1980, mais precisamente, o fã de pós-punk alternativo britânico, havia se identificado com a sonoridade do álbum e com as letras de Orzabal e Smith, quase sempre falando de experiências em primeira pessoa do singular. Daí, entre o fim de 1983 e o segundo semestre de 1984, eles tentaram exaustivamente ampliar seu espectro sonoro. O Tears For Fears surgiu em Bath, no sudoeste da Inglaterra. Além de Orzabal e Smith, é possível dizer que havia mais dois colaboradores muito próximos envolvidos até o lançamento de “Big Chair”: o produtor Chris Hughes, o engenheiro Dave Bascombe e o tecladista e arranjador Ian Stanley. Além deles, estava presente o baterista Manny Elias, que tocou na maioria das faixas de “Big Chair”.
Cerca de seis meses depois do lançamento de “The Hurting”, o TFF já havia gravado e lançado um novo single, “The Way You Are”, no qual pretendia anunciar a tal mudança sonora. Era uma época em que os grupos procuravam expandir sua sonoridade. Se observarmos com atenção, gente como Simple Minds, U2, INXS, entre muitos outros, estavam atrás de um som que ultrapassasse as fronteiras do pós-punk da virada da década de 1970/80 e atingisse públicos maiores. A canção falhou, tanto em apresentar a tal novidade, quanto reproduzir algo da excelência de “The Hurting”. A gravadora pressionava a dupla em busca de um hit e o primeiro single que faria parte de “Big Chair”, não foi exatamente bem sucedido – “Mother’s Talk”. Orzabal e Smith ainda estavam às voltas com compromissos do álbum anterior e isso consumia tempo que poderia ser dedicado ao trabalho em estúdio. Felizmente, Chris Hughes, produtor de “The Hurting”, seguia no comando, mas não sem turbulência. A dupla chegou a demiti-lo durante o processo criativo, mas a dificuldade em chegar a algo novo e convincente fez com que ele fosse readmitido. Essa volta coincidiu com a chegada de novo material, recém-composto nas últimas datas da turnê de “The Hurting”.
Na verdade, era uma suite prog-punk-eletrônica, que surgiu ainda derivada de “Mother’s Talk” e gerou duas faixas: “Head Over Heels” e “The Working Hour”, canções que se tornariam singles após o lançamento do novo disco. A ajuda de Hughes e Ian Stanley foi decisiva para a depuração do original e sua transformação. Mas, ainda assim, não eram singles dignos de puxar a divulgação massiva de um álbum que se pretende bem sucedido mundialmente. A solução veio de outras duas canções que Orzabal estava trabalhando. A primeira veio de uma imersão profunda nos aspectos mais rítmicos dos álbuns recentes do Talking Heads. O refrão veio fácil, simples e prometia ser eficiente em meio a uma batida eletrônica e cadenciada. Seu nome: “Shout”. Quando a gravadora a ouviu, decidiu que seria o single certo para divulgar o álbum em tempo real, quando ele estivesse disponível para venda. A surpresa viria com a outra canção, que era, digamos, mais própria para as paradas de sucesso. Orzabal não queria cantá-la e delegou a tarefa a Curt Smith, que não se fez de rogado. O arranjo veio a partir de “The Waterfront”, faixa que o Simple Minds havia colocado em seu álbum de 1984, “Sparkle And Fade” e, após inserção de solos de guitarra e um dueto entre programação de bateria e bateria real, ela foi batizada como “Everybody Wants To Rule The World”. A sorte estava lançada.
De fato, a canção estourou na Inglaterra em tempo recorde e isso fez com que ela assumisse o posto que seria de “Shout”, especialmente num mercado potencialmente promissor, ainda que tradicionalmente complexo para bandas inglesas: os Estados Unidos. A ideia da canção, pelo menos para Hughes e a dupla, é que ela fosse o tipo de som que se ouve num passeio de carro pela Califórnia. Talvez por essa associação que o clipe de “Everybody Wants To Rule The World” tenha sido rodado nos Estados Unidos, com elementos familiares – carro, dancinha de break, estrada – e a banda tocando no estúdio. Depois ela, “Shout” e “Head Over Heels” também chegaram ao primeiro lugar nas paradas de singles, o que motivou a dupla a excursionar por várias cidades. Aqui no Brasil, como falamos no início do texto, “Songs From The Big Chair” chegou via rádio, depois de os clipes de “Everybody…” e “Shout” estourarem no FMTV, no ClipClip e no BB Videoclip, os programas de clipes da época. Mas talvez nem Orzabal, Smith ou qualquer um dos participantes na produção do álbum pudessem imaginar que ele permaneceria forte e consistente ao longo do tempo.
Sendo mais justo, “Everybody Wants To Rule The World”, com sua letra comunal, que honra uma das inspirações temáticas de “Big Chair” – a psicanálise – permaneceu viva. E “Shout”, igualmente tributária dessas influências psicológicas, também. Essas duas canções mantiveram o Tears For Fears vivo por muitos anos. Dá pra dizer que o disco que lançaram em 1989, “The Seeds Of Love”, com uma sonoridade diferente, mas igualmente pop, ainda que complexa em termos técnicos, também contribuiu para fixar o nome da dupla no volátil imaginário pop. Neste terceiro álbum, o TFF mergulharia fundo numa influência que ficara subentendida nos discos anteriores – os Beatles – e assumiria uma postura um tanto diferente. A dupla se separaria no início dos anos 1990, época na qual vieram dois álbuns – “Elemental” (1993) e “Raoul And The Kings Of Spain” (1996) – que não chegaram a arranhar o sucesso da trinca inicial. A retomada da carreira veio no início dos anos 2000, quando lançaram o soberbo “Everybody Loves A Happy Ending” (2004) e um novo álbum de inéditas só viria dezoito anos depois, “The Tipping Point” (2022).
O Tears For Fears tem essa carreira elegantemente sucinta. Mesmo com pontos altos em todos os momentos dela, dá pra dizer que “Songs From The Big Chair” marca essa vontade de estar nos corações e mentes do maior número possível de pessoas. A sonoridade deste álbum é descendente do melhor que o pop rock britânico produziu desde os Beatles, com timbres, detalhes, demonstrações de técnica, tudo tão importante quanto o acento pop e a capacidade que suas canções têm de grudar na mente dos ouvintes. Se alguém o escolhesse como o melhor álbum dos anos 1980, não seria um absurdo. Pelo contrário.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.