O primo menos conhecido de “Born In The USA”

 

 

Uma das mais imperdoáveis gafes que alguém pode cometer na apreciação musical em geral é dizer que “Born In The USA”, de Bruce Springsteen, é um disco patriótico. Pelo contrário, trata-se de uma cacetada bem dada na administração Reagan e em como ela virou as costas para os veteranos da Guerra do Vietnã, dentro da cartilha neoliberal – que o presidente americano e a primeira ministra inglesa, Margaret Thatcher, implantaram e viabilizaram no mundo. Bruce Springsteen, naquela altura, lançando o seu sétimo álbum, seguia uma tradição de representar o americano médio, pertencente à classe trabalhadora, ferrado pela circunstâncias, perseguidor implacável do sonho americano, conhecido por lá como “blue collar”. Lançado em junho de 1984, “Born In The USA” colocou Bruce no mapa mundial da música, vencendo um bloqueio que sua obra tinha até então, de fazê-lo quase inquestionável em sua terra natal e na Inglaterra, mas oculto da maior parte do mundo. Um ano depois, outro álbum, menos conhecido, celebrava o mesmo público, tratava de assuntos correlatos e colocava um outro artista no mapa da música pop: “Scarecrow”, de John Mellencamp.

 

 

Lançado um ano depois de “Born…”, “Scarecrow” trazia uma ode à vida simples do mesmo americano médio, ameaçada pelos mesmos políticos de extinção diante do crescimento das grandes corporações e da precariedade do trabalho. Esta América das cidades pequenas, da vida no campo, mas dotada de esclarecimento e noção democrática, é o próprio berço de John, nascido em 1951, na cidade de Seymour, no estado de Indiana, em pleno Meio-Oeste americano. John era uma espécie de aspirante a Bruce Springsteen, mas padecia de séria desorientação artística até este álbum. Com uma carreira iniciada nove anos antes, John lançara um álbum intitulado “Chestnut Street Incident”, no qual assinava como Johnny Cougar, por sugestão do empresário, que não achava que seu sobrenome de ascendência alemã – Mellencamp – seria assimilado facilmente pelo público.

 

 

A verdade é que John só foi fazer algum sucesso após idas e vindas que lhe custaram seis anos batendo cabeça entre discos equivocados e esperanças quase perdidas. Sendo ele mesmo um integrante desta classe trabalhadora e batalhadora, não desistiu e foi recompensado quando seu sexto álbum, “American Fool”, em 1982. Com ele, cravou dois hits na parada americana – “Jack & Diane” e “Hurts So Good”, ganhando uma merecida fama local. Mas, tanto por conta dos álbuns anteriores, quando da própria qualidade de seu trabalho àquela altura, Mellencamp – então assinando John Cougar Mellencamp – ainda suscitava dúvidas. O álbum seguinte, “Uh Huh”, de 1983, trouxe mais um enorme sucesso: “Pink Houses”, dando a entender que John não iria muito além de uma versão pop e desencanada do próprio Bruce Springsteen, não totalmente comprometido com qualquer assunto mais sério do que contar histórias de romances.

 

 

A guinada veio, justamente, quando John lançou “Scarecrow”, seu oitavo álbum, em julho de 1985. Logo de cara, “Small Town”, terceira canção do disco, foi para o topo das paradas. Espécie de síntese lírica do próprio trabalho, a canção trazia várias situações em que a vida na cidade pequena é glorificada e exaltada como digna e – àquela altura – enfrentando um risco enorme diante da América dos yuppies e da descartabilidade dos valores que formaram o próprio país. John ainda colocou outros dois hits nas paradas: “Lonely Ol’ Night” e “ROCK In The USA”, esta última uma homenagem ao rock americano dos anos 1960, colocando-o como uma manifestação igualmente ameaçada de sumir diante do aumento da mídia e de situações que não contemplavam o que as velhas canções diziam.

 

 

Uma olhada mais atenta para “Scarecrow” mostra um disco mais profundo do que estas três canções. Em primeiro lugar, é preciso exaltar a excelência da banda que acompanha John no disco – e que já o acompanhava há anos -, a saber, Kenny Aronoff na bateria e percussão, Larry Crane e Mike Wanchic nas guitarras, Toby Myers no baixo e John Cascella nos teclados. Essa galera conseguia soar como uma versão americana dos Rolling Stones naquele tempo, não aliviando o peso e a imponência de nenhuma canção de “Scarecrow”. Outras faixas também se destacam: “Face Of The Nation”, “Justice And Independence 85”, “Rain On The Scarecrow” e a melhor delas, “Rain On The Scarecrow”, que abre o disco. Preocupado com a questão das pequenas comunidades do interior do país, John criou, no mesmo ano de 1985, o Farm Aid, um evento que serviu para arrecadar fundos e dar visibilidade para as pequenas cidades através de shows e encontros. Deu tão certo que o Farm Aid ocorre até hoje.

 

 

“Scarecrow” foi relançado neste mês em uma edição caprichadíssima, cheia de atrativos. São várias faixas extras, entre elas algumas canções que ficaram de fora do tracklis original, como “Carolina Shag”, “Cold Sweat” (cover de James Brown) e “Under The Boardwalk” (cover de The Drifters), além de demos e mixagens alternativas dos sucessos mais conhecidos mais litografias e novas notas sobre as canções e gravações. É um disco luminoso, muito bem produzido e tocado, que mostra um artista encontrando seu foco e mudando de pele diante do público. A partir daqui a carreira de John Mellencamp alavancaria e renderia outros belos discos no futuro próximo, sempre tendo em mente as questões dos “blue collar” e suas desventuras num país que virou as costas para eles. Se você gosta de Bruce Springsteen e ainda não parou para ouvir John Mellencamp com calma, esta é uma ótima oportunidade.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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