2022 – O Ano de Vitor Ramil
Ainda estamos elaborando nossas listas de melhores discos e canções do ano, mas já vamos dar um baita spoiler. Vitor Ramil é o grande nome nacional de 2022. Ele é responsável por um dos mais interessantes e inspirados trabalhos deste ano, “Avenida Angélica” e, como se não bastasse, ainda brindou seu público com o relançamento caprichadíssimo de seu álbum “Ramilonga – A Estética do Frio”, originalmente realizado em 1997. Em ambos os casos, Ramil demonstrou um cuidado estético que vai muito além da música que compõe brilhantemente, algo que se materializou no capricho das edições físicas de ambos os trabalhos, bem como no zelo para com sua própria obra e seus desdobramentos. Cada um a seu jeito, “Avenida” e “Ramilonga”, mostram a dimensão da trajetória de Vitor, que é um artista múltiplo. Conversamos com ele duas vezes no ano, uma para cada disco lançado, e falamos sobre vários assuntos – Rio de Janeiro, Pelotas, Lula, bolsonaro, perspectivas para o Brasil.
Vitor, para quem não sabe nada a seu respeito, é o irmão mais jovem de Kleiton e Kledir Ramil. Assim como a dupla, ele é cantor, compositor e vai mais além, atuando também como escritor e novelista, sua obra também tem interseções com o teatro e expressões diversas. Inquieto, criativo e plural, Ramil – para a tristeza dos que estão acima do Trópico de Capricórnio – ainda é estranho fora dos domínios do Rio Grande do Sul e quem perde somos nós. Desde 1981, quando tinha 18 anos, Vitor está presente na música, quando teve sua canção “Estrela, Estrela”, gravada por Gal Costa. A partir daí, iniciou uma trajetória como cantor e compositor, lançando álbuns ao longo dos anos 1980, que mesclaram impressões musicais e líricas de sua Pelotas natal, confrontadas com a visão widescreen que percebia em suas retinas à medida em que iniciava uma vida no Rio de Janeiro. Vitor foi, basicamente, um artista experimental em seus primeiros álbuns, a saber, “Estrela, Estrela”, “A Paixão de V Segundo Ele Próprio”, “Tango” e “À Beça”, lançados entre 1980 e 1995. Entre os dois últimos, um intervalo de oito anos, no qual Vitor aprofundou o relacionamento com o teatro, criando um personagem, que funcionou como seu alter-ego: o Barão de Satolep, um nobre meio punk e decadente, que tinha uma vida noturna e fora dos padrões. Nesta época, o personagem costumava aparecer nos espetáculos do grupo Tangos e Tragédias.
Este período inicial da carreira de Ramil o levou a realizar “Ramilonga – A Estética do Frio”, em 1997. Ainda que seja um disco calcado numa releitura e mesmo refundação de tradições musicais gaúchas, ele foi composto, concebido e gravado muito longe do Sul, mais precisamente, no Rio de Janeiro, onde Vitor morava na época. Ele diz que sua experiência na cidade e sua visão distante da terra natal lhe deram foco para entender como os aspectos culturais e estéticos de várias tradições gaúchas soavam exagerados e mesmo caricatos. E mais: a distância e a saudade quase o obrigaram a criar uma novíssima tradição, na qual era possível ser gaúcho e não cantar empostado, não usar trajes típicos o tempo todo e não pensar da mesma forma. “Eu também tenho direito a cantar essas músicas” diz Vitor. E, para isso, quando vai gravar “Ramilonga”, ele usa, justamente, o ritmo que tem uma ascendência afro-americana, que suscita a dança e que, por questões estéticas, é de fácil assimilação e execução.
Além do ritmo, Vitor dá ao disco um conceito, o da “estética do frio”, no qual, vivenciando o verão carioca, vê o quanto faz falta uma espécie de antiestética do calor. De como o Brasil também pode ser frio, pode ser diferente do que normalmente é visto e tido como a única verdade. Sendo assim, “Ramilonga – A Estética do Frio”, acaba soando como um manifesto de novidades e novas perspectivas sobre algo que parecia arraigado. Claro que o disco não foi unanimidade crítica, mas foi totalmente entendido como ele o é: algo novo. Os arranjos das canções, cheios de instrumentos indianos, visitando o que Vitor nomeou de “as sete cidades do frio”, criando um trajeto imaginário-real do sul que parecia tão distante, dá ao álbum a marca registrada da própria obra do artista como um todo: plural, além da música, uma interseção de expressões.
A partir daí, Vitor Ramil, segundo ele mesmo, teria encontrado sua voz, sua música e seu jeito como artista. Os discos que vêm a partir de “Ramilonga” refletem este foco adquirido. O experimentalismo dá lugar a uma marca registrada de requinte e doce refinamento. Discos como “Tambong” (2000) e “Longes” (2004) mostram isso, colocando a obra de Vitor numa dimensão próxima da de artistas subtropicais como Jorge Drexler e Fito Paez (seus amigos e parceiros em diferentes momentos). Com o seguinte, “Satolep Sambatown” (2007), Vitor se junta ao percussionista Marcos Suzano, e viaja por vários países, levando a mescla de universos ritmicos e sonoros tão distantes. O foco para o Sul e para suas tradições revisitadas volta em “Délibáb”, de 2010, abrindo a década, que ainda teria duas relizações marcantes para ele: “Foi No Mês Que Vem” (2013), um songbook com várias participações, de Milton Nascimento e Caetano Veloso a Drexler, Paez e vários outros, e “Campos Neutrais” (2017), um disco conceitual no qual Vitor conta a história da região que dá título ao álbum, situada entre as cidades de Santa Rita do Palmar e Arroio Chuí, declarada como neutra pelo Tratado de Santo Ildefonso, assinado por Portugal e Espanha em 1777.
Corta para 2022.
Pandemia. Indefinição, volta às atividades. Tudo isso passava pela ordem do dia e Vitor Ramil estava ocupado com o lançamento de “Avenida Angélica”, um álbum feito em parceria com a poeta Angélica Freitas.
Para falar dele, vale resgatar a resenha que fizemos em 13 de abril deste ano.
“Em primeiro lugar, que fique claro: “Avenida Angélica”, novo álbum de Vitor Ramil, é sensacional. Só com esta frase, você pode salvar o texto para ler mais tarde ou, melhor ainda, pode ir no seu serviço de streaming preferido e colocar o disco para tocar enquanto me lê aqui. Numa ou noutra opção, você vai se espantar com a riqueza lírica e melódica que o décimo segundo trabalho do cantor, escritor, compositor e intelectual gaúcho ostenta. Construído a partir da leitura pessoal de Vítor sobre poemas de Angélica Freitas, poeta gaúcha, da mesma Pelotas que os Ramil, os dois só foram se conhecer nos anos 2000, quando ela morava na Holanda. Só quando regressou à cidade natal é que Vitor foi saber que os dois eram vizinhos próximos. Este descompasso geográfico, no entanto, não é notado ao longo das faixas do álbum, pelo contrário. O que Ramil obtém aqui é um resultado tão impressionante e rico que não há outra escolha a não ser embarcar no mundo de referências pessoais e pop que Angélica imprime em seus poemas. Aliás, a fidelidade da adaptação dos textos para o formato canção respeitou quase integralmente o que ela havia escrito. Sendo assim, com respeito e afinco, as faixas que surgiram compõem um painel de crônicas e visões de quem nasceu entre os anos 1960/70 e cresceu numa cidade do interior, crescendo e ganhando o mundo.
“Avenida Angélica” nasceu audiovisual. O cantor pensou em apresentações que percorreriam algumas cidades e não se deu conta de que dispunha de um material que também poderia ser um álbum. Concebido como show e com viabilidade prejudicada pela pandemia, Vitor decidiu fazer uma gravação ao vivo, como se estivesse diante de uma plateia, usando toda a parafernália para captação sonora de um palco, procurando registrar tudo com o mínimo de – muitas vezes nenhum – overdubs, obtendo assim um resultado praticamente equivalente ao “ao vivo”. O palco escolhido foi o Theatro Sete de Abril, em Pelotas, com duas noites em agosto de 2021. Ali, com cenografia de palco e recursos sonoros configurados para voz e violão, Vitor achou a melhor tradução do repertório que havia construído e o registro em vídeo – disponível no Youtube, neste link – consegue dar à apresentação um ar completamente diferente de tudo o que se costuma ver no gênero. Igualmente acolhedor, como estranho, o conteúdo de “Avenida Angélica” é magnético.
Vitor Ramil já tem uma carreira consolidada há muito tempo. Dá pra dizer que ele é um artista brasileiro com trajetória única, saindo da cena pop dos anos 1980, adentrando os anos 1990 em busca de uma identidade em meio à demandas de um mercado lidando com a globalização, para chegar aos anos 2000 de vento em popa com a tendência que acabou prevalecendo – a independência das gravadoras. Deste jeito, com ideias próprias e que dão à sua carreira um ar de constante mutação, ele ergueu um repertório que compreende milongas, folk, MPB, rock, jazz, blues e visões de mundo que são caracterizadas por uma narração que oscila entre a primeira e a terceira pessoa, levando para suas composições muito do que faz quando escreve livros e novelas. Só que, em “Avenida Angélica”, esta maneira de compor foi modificada totalmente para caber o conteúdo lírico, que veio de outra fonte muito diversa e exuberante. Por isso é um álbum tão distinto numa carreira de trabalhos distintos.
O feixe de dezoito faixas tem vinhetas, passagens, recitais e a maioria de canções. Tudo é de extremo bom gosto e elegância minimalista, mas sem sutilezas. As letras são muito diretas e cheias de referências, algo que já se percebe de imediato, com “Rilke Shake”. A partir dela, as fronteiras entre erudição e popular são borradas, com narrativas belas como a de “Família Vende Tudo”, cheia de cenas de um cotidiano comum a várias gerações de brasileiros de classe média e/ou baixa. Em “A Mina de Ouro de Minha Mãe e Minha Tia”, as idas e vindas de “empreendedores” é retratada novamente de forma familiar, a ponto de despertar empatia no ouvinte logo de bate pronto. Outras canções belas são “Vida Aérea” e “R.C”, que resume o amor e a importância das canções do rádio na formação do caráter e da personalidade ao longo dos tempos.
“Avenida Angélica” tem conteúdo para ser filme, peça de teatro, livro e disco. O ouvinte percebe que está diante de um espetáculo que só se impõe pela diversidade/necessidade de expressão em múltiplas formas de arte. É algo imenso, belo e que vai aconchegar o espectador numa espécie de sala de espelhos de experiências e vivências cotidianas e afetivas. Coisa linda.”
Com um trabalho desta natureza, Vitor já poderia sossegar. Mas não.
Ao longo do primeiro semestre, ele se deu conta de que “Ramilonga” faria 25 anos em 2022 e deu início aos preparativos para celebrar a data. Reviu as canções e notou a necessidade de remasterizar e remixar o álbum. Encontrou um jeito de fazer uma “faixa inédita”, “Milongamango”, que surgiu como uma colagem musical de três milongas do álbum: “Milonga”, “Indo ao pampa” e “Milonga de sete cidades”, mais a voz do poeta João da Cunha Vargas, extraída de fita cassete gravada em 1978. Nela, o poeta declama de forma comovente seu poema “Mango”, que Vitor já havia musicado no álbum “Délibáb” (2010). O resultado lembra os experimentos do álbum “Love”, em que Giles Martin mistura e refaz algumas das canções dos Beatles, gerando novas e interessantes visões.
Vitor também é artista que gosta de show. Fez o que pode para levar “Avenida Angélica” para os palcos. Como é um trabalho que tem cenografia específica e um roteiro praticamente teatral, a empreitada partiu de uma apresentação em Pelotas – gravada ainda na pandemia, apenas com o artista no palco – e percorreu caminhos próprios. Com “Ramilonga 25”, Vitor brindou um felizardo público que compareceu ao Teatro da PUC-RS, no início do mês de outubro deste ano, trazendo os músicos originais do álbum – exceto pelo falecido baixista Nico Assumpção – para o palco e executando todas as canções presentes.
Aqui está a entrevista que fizemos com Vitor por conta do lançamento de “Avenida Angélica”, em abril deste ano.
– Como está o “Avenida Angélica” depois do lançamento?
Vitor – a repercussão é incrível, muito boa. Era tudo meio enigmático para mim, com tudo novo, com a poesia da Angélica, eu não tinha a real noção de como seria recebido, tanto pelas composições que já ganharam uma outra cara em função dos poemas, pelo pacote todo. Hoje em dia tá tudo muito mudado, do meu disco anterior, “Campos Neutrais”, já mudou muitíssimo. Esse mundo é todo da Internet, praticamente. Às vezes ele dá uma impressão meio ilusória, eu acho que a repercussão é ótima, mas os canais virtuais são misteriosos.
– O show em Porto Alegre onde vai ser?
Vitor – No Teatro São Pedro, vai ser o mesmo show que a gente gravou em Pelotas e que está no Youtube. Sou eu, no cenário, com um telão de fundo e videos.
– Você tem percebido uma retomada na pós-pandemia?
Vitor – Sim, eu já tenho visto gente fazendo shows – como o Chico César – mas também vejo gente marcando e precisando adiar porque alguém ficou doente. Esse meu show seria apenas com 70% do publico, mas já vi que ficou liberado para 100% , eu mesmo tive alguns funcionários que pegaram covid-19 mesmo todo mundo já com as três doses.
– Como você situa o “Avenida” na tua carreira?
Vitor – Ele é mais um movimento meu – pra quem me acompanha, ele é mais um movimento inesperado. Eu me mobilizo muito sobre as questões formais para não me repetir. Eu sou motivado pelas questões formais, o disco me surgiu como mais um desafio sobre essas questões. Sob este ponto de vista eu não trabalho pela fama, não facilito para os ouvintes. O “Avenida” faz uma síntese do meu trabalho – por um lado é só voz e violão. Há muitos anos eu falo que meu próximo disco vai ser voz/violão e eu nunca fazia. Aconteceu agora, pelas circunstâncias da pandemia – eu fiquei muito feliz com o resultado, como as canções foram compostas, poder oferecer essa visão ao ouvinte. O espetáculo tem mais uma faceta mais teatral – que as pessoas não conhecem muito. A fase que eu fazia o Barão de Satolep tinha muito humor, humor negro – é uma retomada daquele momento. E tem outra coisa – eu sempre musiquei muita poesia.
– Você é um artista que tem muitos encontros na carreira. Como foram, por exemplo, os encontros com o Milton Nascimento e com o Caetano Veloso?
Vitor – eu era um discípulo do Milton – o meu primeiro disco é de um discípulo dele. Eu fui a Minas, levei o “Estrela, Estrela” – eu tinha 19 anos, para ele. Eu ouvi muito o “MINAS” (disco de Milton, lançado em 1975) enquanto eu gravava o meu primeiro disco. Quando eu tinha 13 anos, Milton veio a Pelotas com o show deste álbum e eu me lembro de ter ido ao teatro e ele nem tava cheio. No fim do show eu fui falar com ele, fui no camarim e me meti no meio da banda dele. Na época, os meus irmãos faziam parte do grupo Almôndegas e, na semana seguinte, o Almôndegas abriria o show de Caetano e Gal em Porto Alegre. Eu fui no show do Milton para convidá-lo a assistir este show. Ele disse: “Pois é, daqui a uma semana, muito difícil”. Na semana seguinte, eu fui a Porto Alegre para assistir ao show – e o Caetano disse: “tem um amigo nosso na plateia” e a luz mirou o Milton sentado, assistindo ao show – eu fiquei convencido de que eu fui o responsável por aquilo!
Eu fui muito precoce em conhecer a boa música brasileira por conta dos meus irmãos – eu estava sempre acompanhando deles e dos amigos deles. Lembro de ir a Porto Alegre para ver o Egberto Gismonti com 14 anos, eu me ligava muito nessa geração da música nacional. O Milton foi o mais importante dessa galera. Muito tempo depois, o Gastão Villeroy, baixista, que tocava com o Milton, disse que ele tinha adorado uma canção minha, chamada “Não É Céu”, que está no meu álbum “Tambong” (2000). O Milton já havia gravado “Estrela, Estrela” em 2010, daí a gente voltou a se comunicar, convidei ele para cantar “Não É Céu”, no meu disco “Foi No Mês Que Vem” (2013).
– Eu escrevi um romance em 2006, chamado “Vestido de Flor”. Nele, a sua canção “Foi No Mês Que Vem” tem um papel importante. Como ela surgiu?
Vitor – Essa música tem uma trajetória estranha. Eu tinha a impressão que ninguém ia gostar dela, foi a última música a entrar no meu disco “À Beça” (1995) e depois ela fez parte do “Tambong” (2000), com participação do Egberto Gismonti. O próprio público foi dando à canção um carinho e uma força próprios. Eu compus “Foi No Mês Que VEm” no Laranjal, na nossa casa na praia. Eu estava na frente da casa, comecei a cantar a música, primeiro fiz a melodia, depois veio a harmonia. Eu a cantei, o começo dela não era essa melodia – era algo muito próximo de “Summertime” (cantarola). Foi algo muito casual, o verso “vou te vi” veio primeiro – e ela surgiu assim, eu dediquei à minha mulher, Ana, a gente tá junto desde os 18 anos.
– Como é tua relação com estes músicos do Cone Sul. Os argentinos, uruguaios…
Vitor – Eu sou muito amigo da irmã do Charly Garcia, a Jose, e dos irmãos dele, dos sobrinhos dele, mas só vi o Charly pessoalmente uma vez. O Fito Paez eu conheci na casa do meu irmão, Kledir, no Rio. Só voltei a encontrá-lo no “Foi No Mês Que Vem”, só nos encontramos para a gravação – o engenheiro de som que gravava comigo em Buenos Aires é muito ammigo dele, daí veio o encontro. o Pedro Aznar eu conheci no Rio, apresentado pela irmã do Charly, a Jose. Ele adorava o meu disco “À Beça”, daí, numa ida a Buenos Aires, ele participou do meu show. A Mercedes Sosa me recebeu na casa dela para eu fazer versões de “Não É Céu” e “Estrela, Estrela” – daí a gente ficou mais próximo. Já faz tempo que a gente não se encontra, o Pedro é um talento impressionante, ele compoe um arranjo para doze vozes em questão de minutos, tem uma capacidade de concentração absurda, concilia bom gosto e sensibilidade. Sempre tive a sorte de gravar com ótimos baixistas – Alex Malheiros, Pedro Aznar, Nico Assumpção, Jamil Joanes, André Gomes…
– E como se deu a sua formação musical? Quais as suas influências?
Vitor – Bem, tudo começa com meus irmãos aqui em casa – e o que eles ouviam – Milton, Caetano, Chico, Egberto, esse setor. João Gilberto tem um grande peso, o disco “Amoroso”, aquele nível de elaboração sutil, o rigor na execução, uma coisa que ele tem e que me marca é que não é um canto estudado, é um canto de quem está curtindo a própria voz, aproveitando o que está cantando, desfruta o que está cantando. são caras que compõem para o próprio timbre. Quando eu era garoto, eu ouvia sem parar Beatles, também ouvia muito Piazolla, e muitos tangos antigos por conta do meu pai, que era uruguaio, que gosto até hoje. Isso me levou para as milongas. Talvez o que eu mais escute de música hoje seja Miles Davis. Sempre gostei muito de jazz , Keith Jarrett, o disco “My Song”, que é um dos meus discos favoritos. Também gosto de Radiohead, Nirvana, Alberta Hunter na fase mais idosa dela, Chet Baker, coisas que minha mulher Ana gosta e que a gente ouve junto.
– Por fim, como você tem lidado com o Brasil?
Vitor – Eu tenho saudade de quando a discussão política era entre FHC e Lula. o caminho que as coisas tomaram foi totalmente inesperado, surpreendente e ainda veio a pandemia – que criou uma atmosfera de pesadelo. Eu sou um grande pessimista, como eu vou dizer, eu não quero ser. Eu me preocupo muito, houve um momento, depois da redemocratização, que a coisa começou a andar num caminho muito bom. Lembro do primeiro governo do Lula, a imagem que as pessoas tinham do país, a gente pensava que ia melhorar. Mas aí veio o retrocesso total, justo de uma pessoa eleita pela população. Hoje vivemos num estado de perplexidade, eu torço para que os brasileiros voltem à razão. A gente olha para mundo e vê que há uma tendência mundial desses caminhos que a gente nem imaginava que voltaria a trilhar – tudo soa como um grande retrocesso. Parece que rolou uma hipnose, uma perda súbita de lucidez, já havíamos avançado tanto em tantas questões, mas de novo temos a cultura brasileira sendo atacada como tem sido, a floresta sendo destruída……..
Semana passada, no dia da eleição, troquei mensagem com Vitor Ramil sobre a esperança de um novo Brasil surgir das urnas. Aconteceu. Vitor fez vídeos de ótimo gosto, usando bonecos para representar o povo, entre eles, vários Topo Giggios (“sou colecionador”, ele disse), pedindo por novos tempos.
O Brasil que surge no horizonte é, novamente, um lugar em que pessoas como Vitor Ramil não são exceções. Dá pra pensar num país culto e possível. Múltiplo e refinado. É uma espécie de utopia possível. E nele, tudo cabe.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.