O governo da banalização da morte

 

 

Este título é impreciso, já aviso logo. A morte na sociedade brasileira é uma realidade permanente, desde que a primeira nau portuguesa apontou no horizonte da costa do que viria a ser a Bahia. Desigualdade, injustiça, cobiça, violência são constantes da própria formação do país, trazidas pelo contato com os europeus e tudo o que veio a seguir. E – bom que se diga – isso não é um traço só nosso: inúmeras nações ao redor do planeta viveram/vivem momentos semelhantes em suas histórias, tanto as que invadiram, como as que foram invadidas.  Porque o ser humano é isso aí: um bicho violento e mau. Não adianta negar ou disfarçar.

 

O problema é a perversão. Há momentos da vida em que nos é proibido extravasar a nossa porção maligna. Por exemplo, quando ocupamos a presidência de um país. A menos que o odiemos com todas as nossas forças e sejamos movidos por uma sede de vingança pessoal, de ajuste de contas com quem nos sentenciou a uma vida miserável, a uma quase inexistência. Há inúmeros exemplos de presidentes e governantes que não tiveram qualquer piedade de seu povo, submetendo-o a terríveis provações ou fuzilando-o pura e simplesmente, caso não concordasse com o que fosse determinado. Não tento buscar explicação racional para o que vivemos hoje no país, abro mão desta vontade porque desejo me solidarizar – mais uma vez – com as pessoas que estão perdendo seus entes queridos para a pandemia de covid-19.

 

Já escrevi outro texto sobre isso há pouco tempo porque pensei, ingenuamente, que estávamos numa situação de lenta recuperação contra a covid-19; que, com a chegada da vacina, tudo começaria a melhorar até, digamos, o fim do ano. Que nada, que nada. As pessoas continuam morrendo – em número muito maior – e eu não aguento mais ver meus amigos lamentando a perda de seus entes queridos, familiares e amigos para esta doença.

 

Eu sei que é um choro de classe média, que a pobreza do país mata e vitima gente em número muito maior e há muito mais tempo. Lamento o índio morto pelo bandeirante, o escravo morto pelo capitão do mato, o periférico morto pelo policial e a criança que tem a vida encerrada pela bala perdida da milícia, do tráfico, da polícia, seja de quem for. Estas mortes são consequências doloridas de uma sociedade como mencionamos acima – injusta historicamente. E que, apesar de algumas tentativas isoladas, não mudou em quase nada.

 

As mortes pela covid-19 são fruto de negligência e inconsequência. De descaso. Daquele tipo de pessoa que vê um filho chorar e manda engolir o choro porque “é frescura”. Porque “é coisa de mulherzinha”. Porque homem não chora. As mortes são fruto de um governo que parece um capataz, que não tem o mínimo verniz civilizatório, que é competente em transferir nossas riquezas e abarrotar bancos e o capital internacional, mas que, na hora de organizar o tratamento de uma doença mortal, esbarra em uma série de situações dantescas, facilmente evitáveis se fosse dada a responsabilidade para universitários de um curso de Administração qualquer. É um governo que odeia o país e seu povo.

 

Um governo que chega ao poder por conta de uma manobra midiática, jurídica, política e com respaldo internacional, não é só um bando de gente tosca. Há mentores, há gente capaz de evitar a morte de 300 mil brasileiros em um ano, mas, para quê? Melhor mesmo é alimentar discurso temerário sobre a eficácia da vacina, politizar o cuidado com a covid-19, barrar lockdowns e outras medidas de isolamento que poderiam salvar vidas. E pior:  fazer vista grossa para protestos de celerados nas portas de hospitais em que médicos e enfermeiros cumprem jornadas cruéis, veem a morte todo o tempo e morrem um pouco a cada vítima que perdem para a doença.

 

O que falta para essas pessoas matarem os doentes com suas próprias mãos? Num esganar enlouquecido, bradando sobre comunismo, jesus, tortura e petismo, num surto de cólera psicótica? Nada.

 

O problema é que esses surtos acontecem nos mandatários do país sob o manto da burocracia, do teatro político-midiático de todos os jornais. A cada político negacionista, a cada empresário que deseja o comércio aberto irrestritamente na pandemia, há o surto e o desejo de morte para o mais fraco.

 

São 300 mil histórias que se encerraram em um ano. E este número não vai parar até que tenhamos alguém que não odeie o próprio povo ocupando a presidência. Este governo entra para história, não só pelo absoluto e completo prejuízo que causa ao país, mas pelo total, inédito e explícito ódio pelo povo. Pela adoção deste desprezo como característica, como marca registrada. E que tem o apoio de 30% do próprio povo. É um governo que governa APESAR do povo. Somos um triste e incômodo obstáculo.

 

O Brasil, caso saia inteiro disso, sem uma guerra civil, mantendo a democracia, precisará de décadas de divã e de estudo para entender o que vivemos hoje.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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