Daniel Lanois inventa o “ambient gospel” em seu novo álbum
Daniel Lanois – Heavy Sun
Gênero: Eletrônico, gospel
Duração: 41 min.
Faixas: 11
Produção: Daniel Lanois
Gravadora: eOne Music
[user 5.0]
Um conselho. Pare tudo o que está fazendo e vá ouvir o novo disco de Daniel Lanois. Não recomendo apenas pela maravilhosa música que ele contem, mas pelo que ela fará com você. Estou na quarta audição seguida, sem parar, com o streaming configurado para repetir ad infinitum e, de alguma forma misteriosa, essas melodias se adaptaram à minha rotina e já se aconchegaram no ambiente, mesmo sendo novas para mim. Aliás, “ambiente” é um termo que podemos usar com toda a certeza do mundo para definir a área de atuação do canadense Daniel Lanois, responsável por assinar trabalhos de gente tão distinta quanto U2 e Bob Dylan, passando por Neil Young, Robbie Roberston, Peter Gabriel e Emmylou Harris, Lanois é discípulo de Brian Eno – com quem aprendeu tudo o que sabe – mas com uma fluência muito peculiar nos terrenos e veredas da música americana mais tradicional. Ele tem um quê de Ry Cooder, mas aplicado à produção e à concepção de discos no estúdio. Em “Heavy Sun”, Lanois faz o que poderíamos chamar de “ambient gospel” sem qualquer indício de pedantismo.
Ou “space gospel”, vá lá. O fato é que as faixas do disco são impressionantes momentos em que uma banda relativamente convencional – baixo, guitarra, beats eletrônicos e órgão – é subvertida pela ação de Lanois na produção, sem que isso pareça algo artificial. Tudo aqui é extremamente natural e muito bonito, uma vez que a voz do organista Johnny Shepherd, na verdade, um pastor batista, descoberto por Lanois em Los Angeles, tem a conexão necessária para conferir autenticidade à aura gospel que surge no disco. Sendo assim, a mistura desta voz, da banda (que também tem Rocco DeLuca, nas guitarras e voz, e Jim Wilson, no baixo e voz) e da maestria da produção, acaba por conferir uma sonoridade única e que mostra características até terapêuticas, mesmo que você não seja praticante de qualquer religião pre-determinada. Mas precisa de alguma espiritualidade.
Sim, porque as canções do álbum são como um culto numa igreja sem muros, num sonho. É tudo muito elevado, as letras são todas otimistas, de amor, paz, união e superação, bem ao estilo das canções gospel do início do século 20, mas com esse toque de profunidade que a manipulação de texturas de eletrônica e ambient music façam toda a diferença possível. Esse disco é diferente de obras como “Acadie”, “For the Beauty of Wynona” e “Shine”, discos que Lanois manteve seus timbres desérticos mas se aventurou em canções que tinham contornos mais próximos do convencional. Aqui ele abre espaço para 11 faixas convencionais, privilegiando as estruturas simples e mexendo em suas molduras em níveis de arranjo e dinâmica. “Dance On”, a faixa de abertura, já coloca o ouvinte no caminho certo para descobrir a magia que o álbum vai revelar. Seus sintetizadores de abertura e loops de bateria, junto com samples de vocais gemidos, evocam os clássicos experimentais que Lanois fez com o mentor Brian Eno.
“Power” evoca o refrão de “Power To The People”, enquanto “Every Nation” já traz efeitos de reverberação e bateria pré-programada, chegando a soar como um outtake das sessões “All That You Can Don’t Leave Behind” do U2, produzidas por Lanois. Por mais bonitas que sejam essas faixas menos lo-fi, elas são mais adequadas para um projeto diferente baseado em efeitos. Em vez disso, o que torna “Heavy Sun” memorável são os exercícios de contenção de Lanois, como as lindas harmonias com seus companheiros de banda e o espaço cedido ao órgão vocal de Shepherd.
Este álbum revela que Lanois é um colaborador e curador de talentos tão hábil quanto criador de produções atmosféricas para megastars. Um show que, se acontecer no pós-pandemia, vai ser histórico. Obra-prima.
Ouça primeiro: o disco todo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.