Crivella, o obscurantista

 

Uma história em quadrinhos tem o tamanho da imaginação de seus autores. Aquilo que exigiria um orçamento estratosférico para ser produzido em um filme é realizado, sem limites, dentro do espaço de uma folha de papel – ou tela de computador. Das formas de criação artística de consumo de massa, as HQs sempre estiveram ligadas a uma energia subversiva. Hoje convivemos com os gibis como uma mídia absolutamente estabelecida, que reina na ordem dos blockbusters cinematográficos. Mas as experimentações formais e criativas permanecem lá, mesmo nas produções das grandes editoras, em geral comercialmente conservadoras.

 

Um quadrinho é imparável, e seu poder de difusão de ideias, vastíssimo. Tem uma garotada muito bacana crescendo nesta geração, produzindo, e consumindo, quadrinhos relevantes para estes tempos. Histórias que tratam de questões éticas, sociais, e de comportamento que não abandonam seu papel de entretenimento mas sabem que é necessário fazer caminhar a evolução da sensibilidade humana. A tentativa de proibição, por parte do (des)prefeito carioca Marcelo Crivella, da revista Vingadores – A Cruzada Das Crianças, na XIX Bienal do Livro, é acintosamente patética. É um peixe querendo parar um vagalhão no mar.

 

Crivella, provavelmente alertado por correntes de mensagens, ou alguma assessoria, se colocou contra a história por cenas de carinho entre dois jovens personagens gays, os super-heróis Hulkling e Wiccano. Um afago, uma cama compartilhada entre a angústia e o carinho. E só. O suficiente para que o alcaide carioca exigisse a suspensão da venda da revista tal como estava e a exigência de que retornasse às bancas e lojas coberta com um aviso e um plástico preto, semelhante ao que envolvia as revistas eróticas que proliferavam em bancas brasileiras duas, três décadas atrás. A direção da Bienal emitiu nota refutando a proibição, mantendo a venda da publicação, e se colocando a favor da diversidade das ideias e manifestações.

 

Não é o primeiro esperneio do prefeito contra a arte, sobretudo a popular. Seus esforços para enfraquecer o Carnaval carioca têm sido sistemáticos e sua imatura oposição à vinda para o Rio da exposição Queermuseu, buscando surfar na popularidade da onda conservadora, se tornou um meme involuntário. Ninguém vai ganhar diploma de profeta por afirmar que a luta de Crivella contra o gibi da Marvel não será seu último achaque contra a liberdade das artes.

 

Mas incomoda muitíssimo saber que ele não está sozinho. Além da turba obscurantista que iniciou a grita contra o gibi por meio de mensagens, por ódio ou tentativa de manipulação da opinião das pessoas, é possível perceber indícios de que o conservadorismo está ganhando batalhas no seio da indústria, em campos onde a produção de HQs é mais facilmente reconhecida.

 

Dois casos recentes foram na pauta na mídia especializada. O quadrinista Art Spiegelman, autor da obra-prima Maus, denunciadora dos horrores nazistas, declarou que um texto seu, escrito para uma publicação comemorativa sobre a Marvel Comics, havia sido recusado por ser “muito político”. Nele, Spiegelman fazia uma denúncia sobre o autoritarismo crescente no mundo.

 

Como um protesto sobre a proibição, e para manter sua voz sendo ouvida, o autor publicou o texto na imprensa.

 

Fato semelhante ocorreu com Mark Waid, escritor responsável por grandes histórias do Capitão América, inclusive um arco recente que foi tema de coluna aqui no Célula. O texto de Waid, escrito para ser lido como uma espécie de fluxo de consciência do Capitão, dizia como os EUA, embora fundados nos ideiais de igualdade e oportunidade, estavam deixando muitas pessoas de fora, transformando em falácias os princípios fundadores do país.
O texto foi aparentemente alterado, com uma versão mais leve seguindo para a publicação, novamente por questões politicamente sensíveis. Waid e jornalistas abordaram a situação na rede, o debate merece ser seguido e conhecido.

 

A Marvel é hoje presidida pelo empresário Ike Perlmutter, apoiador e financiador da campanha de Trump. A empresa, que nos últimos anos, sob o comando da Disney, fez importantes movimentos na busca de uma maior representatividade de seus personagens e histórias, parece agora caminhar para trás. Seu novo editor, C.B. Cebulski já declarou que pretende reduzir o teor mais socialmente atento de seus gibis.

 

Vingadores – A Cruzada Das Crianças é uma história muito querida e elogiada por público e crítica. Talvez por isso, talvez pelo nome, tenha sido escolhida como alvo por Crivella e sua gangue. Mas poderiam ser os inúmeros outros trabalhos que trazem, felizmente, personagens gays, excluídos, minorias, novas ideias e questionamentos urgentes. O trabalho de censura desses obscurantistas precisaria ser vasto.

 

Mas o aceno a uma tentativa, por parte do poder municipal carioca, precisa ser um convite para que consumamos e divulguemos cada vez maia essas histórias e os quadrinhos que empurram a mídia para fora de suas curvas, abrindo outras estradas.

 

Triste estado, o da população carioca. Espremida entre um necrogovernador que massacra seus corpos e um prefeito, fantoche religioso, sedento por extinguir sua arte.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

2 thoughts on “Crivella, o obscurantista

  • 7 de outubro de 2019 em 08:47
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    Tava com saudades dos seus textos, sempre tão maduros… sempre tão fortes. Mesmo quando não são poesia.

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