O corpo crítico e o aprendizado do corpo
A história do cinema brasileiro passa por Jean Claude Bernardet, crítico, professor da Escola de Comunicação da USP e um dos fundadores do curso de cinema da Unicersidade de Brasília.
Nos anos 90 Jean descobriu ser soropositivo e escreveu “A doença”, uma experiência, o livro emblemático que surgiu, nas suas palavras, em forma de um jato, tirando do centro da narrativa a doença em si e colocando em seu lugar a primeira voz do paciente. Esse mês a Companhia das Letras lançou “O corpo crítico”, mais um livro dele sobre as intempéries da nossa estrutura física.
São 60 páginas, 9 textos, entre eles um tirado do próprio “A doença”, e um pequeno grande livro no qual Jean, 84 anos conta sobre a sua decisão de não prosseguir o tratamento para um câncer na próstata.
“Quando tornei público que estava com câncer de próstata e que interrompia o tratamento, muita gente se comoveu pensando que eu desistia. A ficção da entrega à morte, esses amigos a vivenciaram, mas não a inventaram. Ela é gerada por nossa sociedade e tem algumas premissas. Viver o maior tempo possível virou dogma”
A decisão de Jean não foi motivada por um ato de não discernimento: tendo vivido o seu diagnóstico de soropositivo antes da invenção do coquetel e perdido um grande amor para a AIDS, ele tomou consciência dos próprios movimentos, limitações, capacidades e ao recusar idas intermináveis aos médicos que se importam com o tumor e não com os medos e vontades do paciente, faz do seu incomodo com a indústria médica via para a busca do próprio bem-estar.
“A longevidade é uma necessidade industrial. Laboratórios farmacêuticos, fabricantes de máquinas de ponta para diagnósticos por imagem e outras finalidades, hospitais precisam da nossa “bio” – o que não quer dizer a nossa vida- para lucrar, sendo que a manutenção da bio depende da qualidade de vida. Uma forma de resistência a essa ala do capitalismo consistiria em privá-la da nossa bio, isto é, da sua fonte de riqueza.”
Não pensem que O corpo crítico é uma ode negacionista. O que Jean nos propõe com seus textos concisos é uma reflexão sobre até a que ponto o que ele chama de vitalismo pode ditar a nossa existência. Em um trecho ele reproduz o relato de uma amiga que lidou com a dor de assistir ao sofrimento do pai e o discurso do médico de que iriam “até o fim”.
Será que todo estender da luta contra uma doença grave significa vitória?
Crítico até no corpo, como certa vez lhe disse um amigo, Jean não poupa o grande lucro que as vendas de remédios no Brasil colocam no caixa dos conglomerados farmacêuticos:
“Uma receita médica indica que você só vai precisar de seis comprimidos, mas só é possível comprar uma caixa com 15. Terá, então, que jogar fora os outros nove ou deixar em desuso. Como acontece em outros países, nós deveríamos poder pagar apenas pelos comprimidos que precisamos, não é?”
Vale lembrar que no país, segundo dados do Conselho Federal de Medicina, 77% das pessoas fazem uso de medicamento sem prescrição médica e que o Brasil tem 4 vezes mais farmácias do que o recomendado pela OMS.
A razão? O presidente da Associação Brasileira das redes de Farmácias e Drogarias em 2017 explicou em uma entrevista:
“O aumento da quantidade de farmácias é reflexo da demanda por qualidade de vida, de estar bem consigo mesmo. É uma demanda dos tempos modernos e, além disso, o Brasil está envelhecendo”
O livro de Jean Claude em seu tamanho pequeno e rápido de ler ultrapassa a qualidade literária e chega até nós como um enfrentamento, principalmente em tempos de vendas descontroladas de remédios ineficazes contra uma doença pandêmica. Em sua recusa a se expor a uma máquina cansativa e arriscada, Jean nos supre de coragem para que nos inspiremos e tomemos percepção de tudo que vale realmente a pena para nós.
Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.