No Dia do Orgulho LGBTQIA+, conheça o novo disco de John Grant
John Grant – Boy From Michigan
Gênero: Rock alternativo, eletrônico
Duração: 75 min.
Faixas: 12
Produção: Cate Le Bon
Gravadora: Bella Union
Hoje é o Dia do Orgulho LGBTQIA+ e a gente pensou se deveria fazer um texto comemorativo ou escolher um artista representativo para falar sobre. Daí veio o lançamento deste impressionante “Boy From Michigan”, novo álbum de John Grant, que é tão belo, tão sensacional e superlativo que a escolha ficou muito simples. É bom poder falar de um cantor, compositor e multiinstrumentista quase totalmente desconhecido por aqui e apresentá-lo, justo num dia como hoje, uma vez que Grant é gay assumido desde os 20 anos, tendo passado por maus momentos até sair do armário e, a partir disso, ter se transformado num artista que traz esta vivência de uma forma natural para seu trabalho, sendo muito difícil perceber onde começa um e termina a outra. Tudo é natural e desconcertante na obra de Grant, que fez parte de um grupo chamado The Czars até o início dos anos 2000.
A partir de 2010, com “Queen of Denmark”, Grant iniciou uma trajetória solo, da qual “Boy From Michigan” é o quinto álbum. Ao longo do tempo, ele partiu de poesia e interpretação que remontavam a Antony And The Johnsons e Rufus Wainwright para desenvolver um estilo próprio, que foi definitivamente marcado pelo uso da eletrônica a partir do segundo trabalho solo, “Pale Green Ghosts”, de 2013. As batidas e timbres que ele inseriu em suas baladas e canções tortas deram uma profundidade e distinção especiais e ele foi se aprofundando nesta simbiose, sempre optando por uma eletrônica que soasse delicadamente datada, procurando dar um toque de estranheza fascinante, despertando a curiosidade do ouvinte e criando um mundo deliberadamente confuso e interessante. Funcionou tanto que John manteve tal interação até este novíssimo trabalho, mostrando que ele desenvolveu sua marca pessoal e intransferível.
Para produzir “Boy From Michigan” ele recrutou a amiga Cate Le Bon, que também participa do álbum tocando vários instrumentos e quase dividindo as tafefas criativas com Grant, chegando num ambiente sonoro que acrescenta aos timbres eletrônicos, além de alguns instrumentos acústicos, coisas mais inesperadas como clarinetes and saxofones.
“Cate e eu somos duas pessoas com personalidades muito fortes,” diz Grant. “Fazer um disco é difícil em um dia bom. O estresse crescente da eleição nos Estados Unidos e da pandemia realmente começou a nos afetar no final de julho e agosto do ano passado. Às vezes era um processo muito estressante, dadas as circunstâncias, mas também repleto de muitos momentos incríveis e alegres.”
Como este é mais um disco autobiográfico, especialmente sobre como Grant lidou com sua orientação sexual, ele começa o percurso do álbum com três canções tiradas de sua vida pré-Denver, onde nasceu: a canção-título, “The Rusty Bull” e “County Fair”. “É a minha trilogia Michigan”, diz ele. Cada uma atrai o ouvinte para um sentido específico de lugar, antes de desvendar seu significado com uma rica lista de personagens locais, muitas vezes simbolizando a inocência da infância. Aqui Grant e Le Bon obtém um padrão sonoro impressionante. A faixa-título tem inflexões de jazz-soul, embebidas por climas eletrônicos que vão ganhando importância ao longo do arranjo. As outras duas são mais lentas, mais doloridas e desencantadas. “Mike and Julie” e “The Cruise Room”, são talvez as mais afetivas do disco, mergulhando profundamente no final da adolescência de Grant em Denver. Na primeira, Grant é confrontado por um amigo que quer ficar com ele, um homem que ele bloqueia já que ele ainda não estava pronto para lidar com sua própria sexualidade. Na segunda, ele revisita a grandeza intocada e desbotada do bar Art Déco no Oxford Hotel de Denver por uma última noite quando jovem antes de tentar a sorte na Alemanha, onde estudou por vários anos, para ver se a Europa se encaixa melhor.
Já “Best in Me” e “Rhetorical Figure” soam como faixas dançantes com certo ar erudito, com influências que vão de Devo a Pet Shop Boys. Um pouco mais calma, vem “Just So You Know”, mais lenta mas igualmente soturna. A infância como uma narrativa de terror retorna em “Dandy Star”, observando um pequeno Grant assistindo o filme de terror de Mia Farrow, “See No Evil”, no velho aparelho de TV da família, no qual uma garota cega volta para a casa de sua tia e tio após um encontro e, depois de dormir, acorda de manhã apenas para descobrir aos poucos que todos foram assassinados.
Essas nove canções, ainda que sensacionais, antecipam um grande clímax. A deliberada obscenidade de “Your Portfolio”, que imagina a economia dos EUA como um … pênis. Grant explica: “É onde estamos agora nos Estados Unidos. Adoramos o dinheiro e qualquer pretensão de que haja adoração de qualquer outra coisa acontecendo – como um Deus amoroso, por exemplo – é simplesmente patético. Caráter não importa. Intimidade não importa. Nada mais importa. A riqueza é sexualizada. É um poema em homenagem ao dinheiro. A música parece engraçada, mas acho que é provavelmente uma das mais sombrias e sérias do álbum.”
Em ‘The Only Baby’, ele ataca abertamente a América de trump, citando o ex-presidente como o filho bastardo da mãe virgem da nação: “Don’t look so glum/There’s no reason to be sad/Because that’s the only baby that bitch could ever have (Não fique tão mal/Não há razão para ficar triste/Porque esse é o único bebê que aquela cadela poderia ter.)” Como uma coda final, em “Billy”, ele chega à causa de tudo isso, uma cultura prevalente de hipermaquismo, que nos moldou a todos para o fracasso.
No fim das contas, “Boy From Michigan” é uma espécie de anti-sonho americano. É a trajetória de uma pessoa segregada pela sociedade, posta à parte da grande máquina de consumo e postura ocidentais. Em meio a tudo isso, Grant ainda conseguiu demonstrar seu talento como artista, sua postura como homem gay e cidadão, tudo nestes 75 minutos de belas e doloridas canções. Ouçam e conheçam.
Ouça primeiro: “Boy From Michigan”m “County Fair”, “The Cruise Room”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.