Neil Young segue mexendo em seu baú

 

 

 

Quem gosta de Neil Young sabe que o processo criativo do homem alterna momentos de disciplina com caos absoluto. Os novos itens da sensacional série Neil Young Archives mostram isso. Por um lado, temos o início dos anos 1990, um tempo em que Neil encontrou um caminho sonoro nítido e o seguiu até meados da década seguinte. E temos a segunda metade dos anos 1970, quando o homem parecia viver imerso em um mundo de álbuns concebidos e adiados, com faixas surgindo em outros discos, tudo ao mesmo tempo agora. Tal fato foi criando um metaverso de lançamentos nunca realizados que começaram a se materializar apenas nos anos 2010. Discos como “Hitchhiker” ou “Homegrown”, que deveriam ter surgido em 1976 e 1975, respectivamente, só viram a luz do dia recentemente (2017 e 2020). Agora, um dos itens mais aguardados pelos fãs está prestes a tornar-se realidade: “Chrome Dreams”, que deveria ter saído em 1977 e chega com um atraso de 46 anos. E, junto com ele, a NYA relança os discos do início da década de 1990, a saber, “Freedom” (1989), “Ragged Glory” (1990) e o duplo ao vivo “Arc”, com sua contraparte de microfonias “Weld”, de 1991.

 

 

A década de 1980 de Neil Young foi marcada por anos difíceis na Geffen Records, nos quais ele gravou álbuns que não se inserem entre os melhores de sua carreira, pelo contrário. Por isso, seu retorno à Reprise/Warner – sua gravadora original – em 1988 foi saudado com vivas. O primeiro lançamento desta nova fase, no entanto, dividiu os fãs: um disco com ênfase no blues mais estilizado, “This Note’s For You”, gravado com os Bluenotes. Longe de ser um trabalho ruim, mas era muito distante do rock/folk que marcara os melhores momentos da vida do homem. Essa expectativa foi atentida no ano seguinte, quando Neil lançou o bom “Freedom”, um disco sólido, que trouxe um dos maiores sucessos de sua carreira: “Rockin’ In The Free World”, uma canção que falava dos novos tempos pós-Muro de Berlim, que acabara de cair. Além dela, Young trazia algumas faixas de outro álbum adiado dos anos 1970 – “Eldorado”. “Freedom” serviu para recolocar Young no caminho do rock mais forte – um de seus pilares artísticos, junto com o doce folk acústico – e dar-lhe um banho de loja em meio à explosão do grunge, mais ou menos na mesma época.

 

 

O álbum-tributo “The Bridge”, também de 1989, no qual vários artistas daquele tempo mostravam suas canções prediletas da lavra de Neil, também serviu para reacender o interesse do público mais jovem por sua obra. O fato é que, quando “Ragged Glory” foi lançado, em 1990, já havia a mutação sonora que aproximava Young de bandas como Sonic Youth, Dinosaur Jr e a galera de Seattle, que formaria o Pearl Jam pouco tempo depois. O álbum reuniu Young com sua banda Crazy Horse. Gravado no Broken Arrow Ranch, no norte da Califórnia, o disco parte deste rockão visto em trabalhos anteriores como “Everybody Knows This Is Nowhere” e “Zuma”. Na reedição que vem agora, há o acréscimo de quatro raridades: os lados B “Interstate” e “Don’t Spook the Horse”, e a inédita “Box Car” além de uma versão de doze minutos para “Born to Run”. O sucesso de “Ragged Glory” se materializou no álbum duplo ao vivo “Weld”, originalmente lançado com um EP de meia hora de microfonias “Arc”. Nele estão registradas versões especialmente pesadas de “Cortez the Killer”, “Cinnamon Girl” e “Hey, Hey, My, My (Into the Black)”.

 

 

 

 

Sobre “Chrome Dreams”, o outro item do pacote de lançamentos da Neil Young Archives, há pouco a dizer além do fato de que, se tivesse saído em seu tempo, provavelmente seria um dos três grandes álbuns de Young na década de 1970, seu melhor momento da carreira, sem dúvida. Preparado para sair em 1977, o álbum marcava o reencontro de Neil com o estúdio, iniciando uma série de sessões de gravação com a Crazy Horse, que alimentaria sua carreira até o início dos anos 1980. Canções decisivas como “Powderfinger”, “Pocahontas”, “Like A Hurricane”, “Sedan Delivery”, Look Out For My Love”, foram registradas nesse momento. No caso de “Chrome Dreams”, suas canções originais foram parar em discos como “American Stars’n’Bars”, “Comes A Time”, “Rust Never Sleeps”, “Hawks And Doves”, contribuindo para alimentar o mito do álbum que resumiria toda esta produção exuberante.

 

 

Olhando de trás pra frente, com o afago do tempo, é mais interessante analisar o caráter caótico da produção de Neil Young observando as soluções que ele deu para fazer fluir essas canções. Remendadas, amputadas, fora de contexto, as faixas foram se moldando aos álbuns em que foram parar, fazendo de “Chrome Dreams” uma espécie de primo descoberto tanto tempo depois que os sentidos e significados talvez já tenham se transformado de maneira irreversível. Seja como for, quem ganha é o fã, que tem um prato cheio para ouvir e tecer suas considerações.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *