Melodia, holly Melodia

 

 

Luiz Melodia gostava de uma cervejinha. E de chá de hortelã.

 

 

Ao começar a escrever sobre a biografia “Meu nome é Ébano: A vida e a obra de Luiz Melodia”, do paranaense Toninho Vaz, lançada pela editora Tordesilhas, logo me veio à cabeça essas duas informações sobre o músico, confirmadas no livro que chegou ao mercado no início de agosto.

 

Sobre a cerveja, lembro-me de matéria que o jornalista Tom Cardoso escreveu para o Valor Econômico citando a surpresa de Melodia ao encontrar um profissional de imprensa abstêmio. “Hoje eu posso, né Jane?”, teria dito Melodia à sua mulher e empresária, Jane Reis, ao pedir uma gelada no restaurante onde estavam, no Rio de Janeiro.

 

Já as folhas de hortelã acompanharam o músico pelos camarins, mergulhadas em chás, antes dos shows, e estão eternizadas na letra de Estácio, eu e Você, do primeiro disco do músico, Pérola Negra, de 1973:

Hoje o tempo está mais firme

Abre mais meu apetite

Cura e seca minha bronquite

Algumas folhas de hortelã

 

 

Meu apetite abriu quando soube que o autor da biografia é Toninho Vaz, que já escreveu sobre Paulo Leminski, Torquato Neto e sobre o Solar da Fossa, pensão-ponto de encontro de artistas em início de carreira no Rio de Janeiro dos anos 1960. Mas isso é outra história – o que importa é que o texto de Toninho é ágil e conduz o leitor a viver um pouco a vida do biografado.

 

 

E a vida de Luiz Carlos dos Santos – ou Luiz Melodia, Pérola Negra, Negro Gato, Melô – realmente rende um bom livro. Carioca do Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, chamou a atenção de artistas como Wally Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica por apresentar, com elegância natural e versos desconcertantes belos, sua paleta musical na qual misturava samba, blues, rock, jazz, soul music e o que mais pintasse. Filho de Oswaldo Melodia, sambista amador que queria ver o filho doutor, Melodia produziu uma música que traz em seu DNA a ancestralidade do negro, do samba, do morro. Foi quase um bluesman às avessas.

 

 

A primeira parte de “Meu Nome é Ébano” narra deliciosamente a evolução do trabalho de Melodia que, após ter a música Pérola Negra gravada por Gal Costa, começa a ganhar relativa e merecida projeção, nunca entendida muito bem por ele – Melodia era tido como arisco, inquieto, chamado por muitos de marginal. “O sucesso me deixou meio desorientado, perdido, desamparado, aí surgiu o mito do artista maldito, que desencadeou essa fama”, disse, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, durante os anos 1980.

 

 

A biografia tem o mérito de trazer à tona o ser humano afetuoso, de hábitos simples, por trás do Negro Gato. Contribui também para desmistificar uma lenda que gira sobre a música: Pérola Negra não foi gravada para uma travesti do Morro de São Carlos, e sim para uma paquera, Marlene Selix, moradora da Freguesia, na Zona Norte do Rio.

 

 

 

Após o hoje clássico “Pérola Negra”, Melodia desenvolveu interessante catálogo, que contém os petardos “Maravilhas contemporâneas” (1976), “Mico de Circo” (1978), “Nós” (1980), “Felino” (1983), “Claro” (1987), “Pintando o Sete” (1991), “Relíquias” (1995), “14 Quilates” (1997), “Retrato do Artista Quando Coisa” (2001), “Estação Melodia” (2007) e “Zerima” (2014), entre outros, todos muito bem abordados no livro.

 

 

As desventuras do artista com a cerveja e com as gravadoras também ganham espaço no livro de Toninho Vaz. Melodia foi um frequentado assíduo do Baixo Leblon, no Rio de Janeiro, levando as noites até o dia seguinte, entre papos e ideias. Após conhecer Jane, que se tornou sua mulher, apaixonou-se pela Bahia, e também bebeu umas e outras por lá. Nada que apague ou manche a imagem de Melodia – originalidade também era um de seus fortes. Aliás, foi também na Bahia, na capital do estado, Salvador, que sofreu racismo ao tentar se hospedar em um hotel, que não o aceitou como hóspede, sem motivo justificável. Melodia passaria por outros episódios desagradáveis como esse, narrados no livro.

 

 

Os anos 1980 não foram fáceis, mas na década seguinte Melodia voltou a brilhar – a regravação de “Codinome Beija-Flor” no disco “Pintando o sete”, de 1991, música de Cazuza, Ezequiel Neves e Ricardo Arias, chamou a atenção de novos fãs para o trabalho do compositor do Morro de São Carlos, ao se tornar tema da novela “O Dono do Mundo”, da TV Globo. Foi também durante os anos 1990 que Melodia fez história com shows no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, quando gravou “Luiz Melodia acústico ao vivo”. Nessa fase assisti a todos os shows e tive a sorte grande de ter o artista na minha frente, estendendo sua mão enquanto cantava “Negro Gato”. Obviamente, beijei a mão do grande mestre. Tenho também a alegria de saber que gravei meu EP, “Coração Vermelho”, no estúdio Casa do Mato, onde ele gravou, em 2013, “Zerima”, seu último trabalho.

 

 

Os anos 2000 foram bons para Melodia, que fez shows internacionais, gravou discos e recebeu prêmios. Mas, em 2016, ao passar mal em um voo de São Paulo para o Rio, começou uma fase de preocupação com a saúde do artista. No mesmo ano, recebe o diagnóstico de mieloma múltiplo, ou câncer na medula. Descobriu, ainda, uma lesão hepática grave, consequência do consumo de álcool. A essa altura, as folhas de hortelã deram lugar a tratamentos quimioterápicos, transfusões de sangue e de medula.

 

 

No dia 4 de agosto de 2016, o coração do compositor parou de bater. Melodia partiu aos 66 anos, deixando os filhos Hiran e Mahal, além da companheira de tantos anos, Jane Reis, e de muitos admiradores. “Meu nome é Ébano: A vida e a obra de Luiz Melodia” ajuda a manter viva a chama do artista, entre cervejas e algumas folhas de hortelã.

Celso Chagas

Celso Chagas é jornalista, compositor, fundador e vocalista do bloco carioca Desliga da Justiça, onde encarna, ha dez anos, o Coringa. Cria de Madureira, subúrbio carioca, influenciado pelo rock e pela black music, foi desaguar na folia de rua. Fã de poesia concreta e literatura marginal, é autor do EP Coração Vermelho, disponível nas plataformas digitais.

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