“Matrix 4”? Obrigado, mas não.
Ontem correu a notícia: Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss voltarão a viver seus papéis de Neo e Trinity num novo Matrix, que será o quarto episódio da franquia iniciada em 1999. Todo mundo parece ter gostado, mas me permiti um suspiro de desânimo. Sou desses que pensam que só deveria haver um “Matrix”, o primeiro, lançado ainda no século passado. Era uma perfeita síntese do que havíamos vivenciado – e estávamos – e estaríamos – nos últimos e próximos tempos, num raro exemplo contemporâneo de obra que projeta o tempo futuro com coerência e longevidade temáticas. Pois as sequências vindouras – “Matrix Reloaded” e “Matrix Revolutions”- só existiram para desviar a atenção do que realmente importava. Bem vindos à minha teoria sobre “Matrix”.
Imagino facilmente os irmãos – hoje irmãs – Wachowski, criadores do roteiro e diretores do primeiro filme, numa sala em que não enxergam nada. Do outro lado da parede está ele, o sistema. Alguém diz por um microfone oculto:
– Bem, vocês foram longe demais com este filme. Nós não percebemos o que estava por vir.
Os irmãos – hoje irmãs – se entreolham e hesitam em falar para o nada, mas, mesmo assim, tentam:
– Vocês sabiam, sim. O filme está lançado, muita gente vai saber a verdade e …
São interrompidos/as pela voz, que os/as atravessa:
– Vamos oferecer a vocês uma proposta. A fama em Hollywood e a chance de filmar o que desejarem com orçamentos polpudos. O que pedimos em troca é que realizem mais dois filmes sobre o universo de Matrix, desviando a atenção do espectador para o que realmente importa no filme: a própria Matrix, a simulação, os seres humanos adormecidos e vistos como fonte de energia para alimentar o sistema.
Os/as irmãos/irmãs se entreolham. Larry – hoje Lana – sente vontade de recusar e sair da sala. Andy – hoje Lily – está refletindo. A voz oculta vaticina:
– Vocês têm tempo. Podem pensar.
Os/as irmãos/as cochicham. Imagine filmar tudo o que querem. “Speed Racer”, “V de Vingança”…por fim concordam. A voz parece mudar seu tom para algo mais tranquilo e relaxado.
– Escolheram bem. Podem sair pela porta.
Esta conversa, até prova em contrário, nunca ocorreu. Mas o legado que “Matrix” deixou foi convenientemente transformado. De distopia definitiva sobre a alienação humana pela mídia, pelo dinheiro e pela arrogância, entrou para a história como um filme de ficção científica visionário. Vejam, é claro que o longa das Wachowski’s é completamente revolucionário para seu tempo e ainda tem fôlego respeitável em pleno 2019. Sua visão de um mundo devastado por máquinas pensantes é atualíssima e há uma procissão de metáforas contidas nas cenas e nas tramas apresentadas com visual high- tech que ainda serve. O problema é que “Matrix” é muito mais que isso.
Não lembro por qual motivo, mas não vi o filme na telona do cinema. Imperdoável, sei bem. Mas, quando o vi em VHS, não acreditei no que passava diante dos meus quatro olhos. Citações explícitas ao mito da predestinação religiosa (os escolhidos de catolicismo, budismo e por aí vai), as alienações marxistas, as simulações e simulacros baudrillardianos, chupação explícita de referências cyberpunk de William Gibson, tudo isso em roupagem anime-artes marciais, sonorizado por Rage Against The Machine e outros bichos. Era demais pro sistema, mesmo. O filme foi feito para existir por si só. O final é coerente, a trama se sustentaria em aberto, até porque, se é um processo desencadeado (quem viu, sabe), nada mais natural do que deixar a conclusão como o próprio processo e não como seu final. Tal opção só confere mais realismo, ainda que estejamos falando de uma narrativa “sci-fi”.
Pois bem. Com “Reloaded” e “Revolutions”, a narrativa se desloca do objetivo primordial do primeiro filme e se concentra no embate clichê entre bem e mal, algo pra lá de manjado. Enquanto tínhamos uma abstração como “o mal” – as máquinas, seu objetivo e sua condição – nos dois longas posteriores, este confronto fica restrito ao Agente Smith e Neo. Além de uma trama adjacente envolvendo os humanos remanescentes, na iminência de um ataque final das máquinas. Pensem bem: nada disso importa, uma vez que o que nos diz respeito – 1999/2019 – é a condição em que se encontra a humanidade e não os guerreiros que lutam em Zion, o último enclave humano no planeta. Detalhe: em “Revolutions” chegamos a ter uma rave tribal que mais parece um número de cerimõnia de abertura de Olimpíada.
Se com os dois filmes de 2003 o legado de “Matrix” já foi adulterado, fico me perguntando o que aconteceria com este novo quarto filme. Mais diluição? Mais elementos adjacentes e pouco importantes? Mais corrupção de significados pelo “sistema”? Não esqueçam da metáfora, especialmente vocês, que torcem por Neo, Morpheus, Trinity e os humanos contra as máquinas: eles são revolucionários contra o sistema. Basta fazer um exercício de abstração relativamente simples: quem seriam as máquinas hoje? Pense nisso.
Sobre “Matrix 4”, até prova em contrário, soy contra.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.