M.Ward – Migration Stories

 

 

 

Gênero: Folk alternativo

Faixas: 11
Duração: 36 min.
Produção: Craig Silvey
Gravadora: Anti-

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

Senhoras e senhoras, moças, rapazes e demais: que disco bonito. Se vocês estão querendo alguma audição que vá tranquilizar e trazer paz para a sua quarentena, sem qualquer lenga-lenga astral-coach-produtividade, aqui está o seu disco. M.Ward, nativo de Portland, Oregon, pra quem não sabe, é o “Him” da dupla She & Him, que tem Zooey Deschanel como cantora e o responsável direto pelas melodias perfeitas que os dois soltam de tempos em tempos. Antes da parceria com Zooey, M (atthew) Ward já tinha seu trabalho na seara do folk alternativo, em que revisitava e borrava as fronteiras da música tradicional americana. Seu décimo trabalho é este arrepiante “Migration Stories”.

 

Há um fio de conceito amarrando todo o disco. Ward fala sobre movimentos de pessoas – trens, peregrinações, viagens além do tempo – para posicionar sua música como uma espécie de documento vivo destes deslocamentos físicos e espirituais. A seu lado estão Tim Kingsbury, Richard Reed Parry, ambos do Arcade Fire e, na produção, Craig Silvey, que foi o engenheiro de som do melhor disco dos canadenses, “The Suburbs”. Não por acaso, “Migration Stories” foi gravado em Quebec, e traz uma instigante mistura de modernidade e tradição, com a ideia de que o folk não precisa ser loucamente contemporâneo. Dá pra falar de temas universais mesclando timbres e padrões de várias fontes. Há Elvis e sintetizadores; estradas, linhas de trem e wi-fi, todos ao mesmo tempo, pairando sobre as canções do álbum. É como se a embalagem mudasse enquanto o conteúdo permanece igual. É como na vida, certo?

 

O que faz a real diferença neste tipo de álbum é o talento de um artista como Ward. Ele é um discreto mestre da melodia, capaz de fazer refrãos assoviáveis como quem bebe um copo d’água. Suas nuances vocais podem ser de um Damien Jurado bem como de um Elliott Smith, alcançando espectros diferentes. A o trio do Arcade Fire confere instrumentais criativos, com guitarras lamentantes, teclados ocultos, vocais de apoio angelicais, tudo numa moldura noturna e estrelada que dá saudade do que você ainda não viu, num tom levemente sci-fi do deserto sem fim. É difícil de explicar, você precisa ouvir pra entender.

 

A tradição pode estar no andamento dolente de “Coyote Mary’s Traveling Show” ou no instrumental gracioso “Steven’s Snow Man”. Mas ela é invadida e levemente “convencida” a mudar de face, caso de “Heaven’s Nail and Hammer”, com sua alternância entre doçura e mistério, sonoridade esparsa sob a luz a da lua. Assim também é com a soberba “Unreal City”, com pinta de uma das melhores canções de 2020, com sintetizadores, palminhas, vocais de apoio pontuando a melodia e uma aura de ajuste de contas com o que você esperava que fosse acontecer e não aconteceu. Assim também é com a ótima “Migration Of Souls”, que abre o disco, só que num clima mais soturno e misterioso. Aliás, “mistério” há sempre de pintar nas canções do álbum: “Independent Man” é marcada por um saxofone espectral belíssimo, que confere dimensões inesperadas; “Real Silence” é outra povoada por sintetizadores que seguem em procissão enquanto a voz de Ward é dobrada por efeitos arrepiantes. E, finalmente, “Along The Santa Fe Trail” e “Torch”, dois exemplos desta valsa entre tempo, espaço, futuro e decepção, que pontua o disco.

 

“Migration Stories” é uma joia preciosa da música bem feita, bem pensada e virtuosa. Toda canção tem um docinho escondido em forma de som, clima ou sacada de estúdio e isso fará a delícia dos caçadores de detalhes com fones de ouvido. A excelência, no entanto, está muito além disso. Este é um belíssimo disco e merece sua atenção.

 

Ouça primeiro: “Unreal City”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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