Gal Costa 75: A Pele do Futuro
Gal Costa passou por um processo semelhante ao que Caetano Veloso viveu em sua “trilogia Cê”. Atualizou-se e travou conhecimento com uma música brasileira de matriz jovem, cultivada nas últimas décadas. Caê sempre foi um sujeito curioso, assim como Gal. Desde 2011, quando lançou Recanto, produzido, não casualmente, pelo próprio Caetano e seu filho Moreno Veloso, a cantora baiana vem num simpático percurso de revitalização. Foram dois álbuns de inéditas (o sucessor Estratosférica foi lançado em 2015) e dois ao vivo, trazendo suas respectivas turnês de divulgação no país. Além disso, Gal excursionou com Nando Reis e Gilberto Gil no projeto Trinca de Ases, que virou CD/DVD neste ano. Mantendo a criatividade, Pele Do Futuro chega para fechar essa trilogia de novidades. Um aviso desde já: é o melhor de todos estes lançamentos mais recentes.
A grande diferença deste em relação aos trabalhos lançados por Gal nos últimos anos é a produção de Pupillo, baterista da Nação Zumbi. Talvez seja seu melhor momento na pilotagem de estúdio, pois ele foi capaz de ressaltar as melhores qualidades de um “disco de Gal”: ótimos arranjos, diversidade, boas colaborações, mescla de instrumentos acústicos, clássicos, elétricos e eletrônicos, além de uma pitada de excentricidade e marca indelével do tempo em que é feito e lançado. Em seus melhores álbuns dos anos 1970, Gal se tornou famosa justamente por ser uma intérprete capaz de misturar repertórios mais clássicos da MPB tradicional, bem como de seus contemporâneos (baianos ou não) com um senso Pop raro, que se pronunciou a partir dos anos 1980. Seus lançamentos mais recentes recuperam justamente esta sintonia com a atualidade, pois moderna Gal sempre foi.
Há momentos de muita beleza e inovação. De cara, o ouvinte tromba com uma faixa revestida de veludo Disco, a ótima Sublime, que traz a assinatura de Dani Black, mostrando sintonia com a produção independente atual. Em seguida, uma canção doce e com arranjo que poderia estar num disco d’O Terno, Palavras no Corpo, composta por Silva e Omar Salomão. Quando pensamos que trata-se de um disco só com novos talentos da música brasileira, entra a impressionante Vida Que Segue, do mestre Soul Hyldon, que deve ter amado o arranjo classudo e pungente que Felipe Pacheco Ventura (Baleia) fez para cordas muito bem gravadas. “A cada canção que canto, eu vou deixando pedaços de mim pelo caminho”, diz Gal com voz ainda muito potente.
Os duetos mostram o ecletismo vigente por aqui: Cuidando de Longe é de Marília Mendonça, cantora da nova safra sertaneja universitária, que divide os vocais com Gal, num contraponto interessante e inesperado, sobretudo porque, o outro dueto é com ninguém menos que Maria Bethânia, que surge celestial em Minha Mãe, composta por outro grande nome desta novíssima geração: Cesar Lacerda, que a reparte com o interminável Jorge Mautner.
Outras lindezas ainda surgem pelo caminho: Puro Sangue (Libelo do Perdão), que é de Guilherme Arantes, incluída no disco por pedido expresso da cantora, tem o autor em participação nos teclados e sintetizadores, e ostenta o talhe pop clássico que Guilherme imprimiu em toda a sua obra. Realmente Lindo é uma belezura solar assinada por Tim Bernardes, totalmente otimista e apaixonada e com o verso redentor “eu agora já sei quem sou”. A caminho do fim paira no ar a absolutamente bela Vida Passageira, composição atualíssima de Gilberto Gil, embebida por sua atual fase de vivência da velhice, com o verso que dá título ao álbum, brincando com tempos e concepções, tal qual um historiador do tempo presente.
A Pele Do Futuro é o resultado de quase dez anos de renovação e experimentos, prova de uma artista inquieta e ciente de sua relevância dentro da música dentro do país e de todo o mundo. É um dos discos brasileiros do ano, sem qualquer exagero.
Texto originalmente publicado no Monkeybuzz em 24 de outubro de 2018. Link aqui
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.