Fábrica de Casamentos não é Sobre Casamentos

 

O SBT exibe desde 2017 um programa chamado Fábrica de Casamentos. Você já viu ou ouviu falar dele? Eu te conto: uma equipe de “especialistas” se reúne para viabilizar festa e recepção de uma cerimônia de casamento, a partir de inscrições feitas por casais, que desejam participar da atração. O objetivo é proporcionar às pessoas a chance de realizar um sonho, materializado, justamente, na festança e na comilança. Como acessório – que assume papel principal – deve haver uma temática que o casal proponha. Um casamento medieval. Um casamento à italiana. Algo assim. O programa dá vestido, lugar pra celebração, comida, eventuais atrações e ainda dá alguns presentes para os noivos. Tudo isso, esse preparativo, deve durar uma semana. E, claro, sempre dá certo.

Os episódios vão ao ar nos sábados, às 22h, portanto, no horário nobre da emissora de Sílvio Santos e surgem também no canal a cabo Discovery Home And Health, que os veicula em reprise (Quem souber a relação da temática do canal com casamentos, por favor, me envie uma mensagem elucidativa, ok?). Ao longo de cerca de duas horas, o espectador é brindado com todo o processo de realização da festa, que passam pelos tais especialistas: Lucas Anderi é o estilista responsável por criar vestido e terno para o casal; Beca Milano é a chef confeiteira que vai viabilizar o bolo e os doces; Robson Jassa, filho do antológico cabeleireiro Jassa, é quem assina o cabelo da noiva; Jr. Mendes é o BEAUTY ARTIST que vai maquiar a noiva, enquanto Mari Dedevitis vai cuidar da festa em si, dos figurinos, decoração, lugar. No comando da atração, Carlos Bertolazzi e Chris Flores, os apresentadores da coisa toda.

Após ver alguns episódios me dei conta de algo importante: o programa não é sobre o casamento, em si. Claro, há toda uma preocupação em mostrar o amor do casal, o quanto eles se completam e o quanto se sacrificaram para chegar até ali. Mas a estrela do programa não é nem o casal, que deveria ser protagonista: é a própria equipe de especialistas do Fábrica de Casamentos. Eles é que são capazes de realizar todos os pedidos, os mais loucos e sem sentido, proporcionando a felicidade ao casal e suas famílias, materializado num momento de ostentação e discreta megalomania. Tanto isso é verdade que a equipe do programa surge no altar, ao lado dos noivos, enquanto os padrinhos ficam sentados, longe deles.

Sabemos bem que a emissora do Silvio Santos é especialista em atrações desta natureza, que contém, além da auto-exaltação, um subtexto poderosíssimo: quem ajuda é sempre maior e mais forte, pode mais que o ajudado. Sendo assim, o programa se transforma num polo atrativo das boas intenções de pessoas simples, que são expostas sem dó pelo programa. Silvio sempre fez isso. E criou discípulos ao longo de sua interminável trajetória na TV brasileira.

Preocupantes, no entanto, são os contextos que vão surgindo ao longo do programa. Os episódios mais recentes, que traziam casais que desejavam  cerimônias com temática medieval e italiana, respectivamente, apresentavam alguns tiques comportamentais típicos de uma classe média desamparada e fortemente materialista. O primeiro casal desejava que houvesse luta de cavaleiros medievais durante a cerimônia. Pediu figurinos próximos do “estilo medieval”, enquanto a produção do programa valorizava tais solicitações, glamurizando reis, rainhas, palácios, banquetes, confundindo, obviamente, a Idade Moderna com a Idade Média, algo que o próprio casal também fez por várias vezes. Resultado: figurinos próximos do uniforme da Escola Hogwarts de Bruxaria, cavaleiros medievais estropiados, saudando a noiva como se fossem cadetes da Escola Naval em festa de debutantes e uma luta encenada, próxima dos convidados, que era motivo de temor por parte da organização do evento. Tudo balela, tudo combinado. O noivo, que desejava retirar uma espada de dentro do bolo, numa alusão à lenda de Excalibur, ganhou um … BIKETRUCK, ou seja, um carrinho para vender brigadeiros, uma vez que o casal arrecadou parte de seu dinheiro com as vendas de docinhos. Resultado: ganharam uma viagem para a Itália, um país que não existia na Idade Média, mas, ora bolas, quem liga pra isso?

Itália também foi o tema do outro casal. A noiva queria que tudo fosse lindo, típico e cheio de luxo, claro. Além disso, desejava que houvesse uma tina cheia de uvas para que as pessoas pisassem e, deste modo, FAZER VINHO DURANTE A FESTA. Não vou lembrar do tempo de fermentação necessário para que a bebida seja própria para o consumo, nem que, quanto mais antigo, provavelmente o vinho será melhor. Além da bebida, a moça desejava que fossem feitas massas ao longo da festa, massas frescas. E que houvesse uma escola de samba fazendo o som. E que tivesse danças típicas italianas. Tudo, claro, foi atendido pelo programa, com o resultado vindo na forma de pizzaiolos fazendo malabarismos em meio à pista de dança, mulatas seminuas dançando com os convidados, pessoas precisando segurar saias e calças para entrar numa tina de uvas, posicionada no meio do salão. Ao lado, um buffet com raviolis e capelettes, com receitas das avós dos noivos.

Segundo a lógica do entretenimento, Fábrica de Casamento é um programa que faz sucesso entre seu público. É a maior média de audiência do SBT aos sábados, dando à emissora um segundo lugar, à frente da Record. A produção é bem feita, a edição também, tudo funciona de acordo com o que se espera e este é o problema. Os casais que se inscrevem para ganhar a oportunidade de aparecer no Fábrica de Casamentos não parecem preocupados com nada a não ser veicular sua vontade em rede nacional. É uma atitude que é típica do nosso tempo, em que a “realidade” é exposta na TV, de forma a dar contornos novos e verdadeiros às atrações. Ora, o Fábrica é um programa que atende aos desejos dos noivos, dirá alguém, com propriedade. E dará ao casamento um contorno de algo que vai muito além do significado em jogo, como é típico nesta sociedade do espetáculo.

Enquanto isso, uma visita ao site do programa revelará que o patrocínio é das Lojas Havan, cujo dono surge em vídeos nas redes sociais, pedindo a reforma da Previdência, involuntariamente vestido de Napoleão – sua ideia era emular D.Pedro I – dizendo que o país vai quebrar se não fizer a reforma. Olho para os pais e avós dos noivos do Fábrica de Casamentos e me pergunto quantos ali são dependentes de suas pensões e aposentadorias.

A verdade é: se formos ligar os pontos, encontraremos uma trama obtusa e nefasta por trás de quase tudo que vemos na TV. É nossa a escolha de fazê-lo, sob pena – ou benefício – de termos esclarecimento sobre como funcionam as coisas.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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