A barra pesada transformada em música

 

 

 

Nadine Shah – Filthy Underneath
50′, 11 faixas
(Universal)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Quer barra pesada? Que tal cuidar de uma mãe com câncer terminal em seus últimos momentos? E tentar se livrar do alcoolismo por várias vezes sem conseguir? Casar e se separar em pouco espaço de tempo? E ver vários amigos morrendo ainda jovens por vícios em drogas diversas e não conseguir fazer nada para ajudá-los? E, por fim, que tal tentar tirar a própria vida no meio deste turbilhão existencial conturbadíssimo? Pois bem, esse é um resumo bem objetivo dos 38 anos vividos até agora pela cantora, compositora e multi-instrumentista inglesa Nadine Shah. Com tantos eventos complexos, porém totalmente plausíveis para a nossa existência urbana pós-moderna, espanta constatar a beleza e a força do trabalho dela, cuja carreira chega a mais um passo, com o novo e incrível álbum “Filthy Underneath”, lançado há poucos dias na parte norte do planeta. Espanta porque, mais que tudo, as canções presentes no disco esbanjam dois elementos primordiais: força – vocal, nos arranjos, nas letras – e senso melódico. Tudo é belo e meio surpreendente por aqui.

 

Nadine Petra Katarina Shah é filha de pai paquistanês e mãe de ascendência norueguesa. Nasceu numa cidadezinha litorânea no sul da Inglaterra e, como podemos imaginar, passou por vários episódios decorrentes de preconceito, falta de adequação e tudo o que vem a reboque de uma infância, digamos, fora dos parâmetros. Ela deixou sua terra aos dezessete anos e desembarcou em Londres, tornando-se amiga de Amy Winehouse logo em seguida. Logo nesses primeiros momentos na capital inglesa, Nadine conheceu Ben Hillier, sujeito que produziu alguns dos discos mais recentes do Depeche Mode e álbuns para gente como Blur e The Doves. Com tantas barras pesadas enfrentadas em sequência, Nadine desenvolveu síndrome de estresse pós-traumático e outras várias questões que comprometeram sua saúde mental, algo que ela combate com tratamento e com a arte que produz. Além de tudo isso, como muçulmana, ela entende que a todo momento não se sente bem-vinda ou mesmo “britânica” no lugar em que nasceu.

 

Sendo assim, seus álbuns são verdadeiras fugas dessa realidade. Fugas que ela também oferece ao ouvinte, abrindo o coração e a mente para quem quiser ver e ouvir. Sua música é um art pop-rock, com muita influência de PJ Harvey, seja no jeito de cantar, seja nas composições. Mas há também muito da sonoridade que o já citado Depeche Mode desenvolveu a partir dos anos 2000, algo triste, austero, cinzento, mas que ela tempera com alguns toques percussivos, étnicos e surpreendentes Também há algo de Kate Bush pairando no ar. Suas canções não são o que parecem à primeira audição, clamam por mais e mais oportunidades para mostrarem tudo o que contém e tudo soa muito forte, surpreendentemente grande e exótico. Talvez até mesmo sexy.

 

A levada technopop em câmera lenta que conduz “You Drive, I Shoot” é herança total do Depeche que mencionamos acima, mas tem uma tensão coreografada no ar, algo que expressa alguém tentando sublimar a raiva e a perplexidade. Há algo de Bowie nos vocais, talvez. “Food For Fuel” parece trilha de um filme árabe retrofuturista, com percussões e vozes que parecem chamar de séculos atrás. E Nadine plana sobre esse caos, com uma doçura que não sabemos de onde pode vir. “Sad Lad Anonymous” tem bateria jazzística em meio a um canto-falado como se fosse uma não-oração, enquanto “Greatest Dancer” parece abrir uma parada espacial em alguma localidade interplanetária fruto da nossa mente. “Hyperrealism”, por sua vez, traz gotas de teclado que pingam sobre um cenário decadente e melancólico, que vai evoluindo para tons mais claros. “French Exit” é mais eletrônica, porém totalmente tributária do rock-pop asiático que havia na Inglaterra dos anos 1990-2000.

 

“Filthy Underneath” é um álbum colossal, que precisa de muitas audições para ser assimilado. É uma porrada, que coloca gente como Lana Del Rey e similares como se fossem teletubbies. Ouça e constate.

 

 

Ouça primeiro: “French Exit”, “Hyperrealism”, “Greatest Dancer”, “Sad Lads Anonymous”, You Drive, I Shoot”, “Food For Fuel”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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