Faixa-a-faixa: “Inteiro Metade”, do Tagua Tagua
Ressignificar é palavra guia para deslizar em “Inteiro Metade”, disco de Tagua Tagua, projeto de Felipe Puperi, músico e produtor, também conhecido por fazer parte da banda Wannabe Jalva. Sucessor dos EPs “Tombamento Inevitável” e “Pedaço Vivo”, o álbum carrega um embalo delicioso em que partes, estilhaços e metades constroem o mosaico existencial de “Inteiro Metade”, em parceria com Projeto Natura Musical. Com nove faixas, Tagua Tagua junta elementos percussivos, eletrônicos e da música feita no país na atualidade, resultando em camadas sonoras cheias de significado e detalhes que colorem o disco.
Pode parecer trocadilho barato mas “Inteiro Metade” é inteiro em todas as partes. Sonoridade, histórias e alegorias, é um disco para sentir, escorregar nas melodias, passear pelo interior de si. É um convite à entrega ao espelho, por pior que o reflexo possa parecer. É sobre ressignificar o caos, as sobras e sombras que ficam após as rupturas. Quem nunca foi despedaçado, cortado e ferido nessa existência? Quem nunca sentiu isso, viveu anestesiado.
Em nove pedaços, faixas, histórias, Tagua Tagua transforma os sentimentos de partidas, encontros, desencontros, o eu em si, mudanças que trazem na sua essência o sofrimento e a dor da divisão do que antes era “nós” em “eu” e “tu”.
As três primeiras faixas já haviam sido liberadas e “Mesmo lugar” é aquele começo de disco que chama atenção, pega pelo pé e convida ao passeio. Lembrou muito o Tame Impala do início, com uma psicodelia de uma floresta colorida dos ciclos naturais, do vir depois do ir. É isso, é o encarar o agora, ser presente no presente com o que podemos seguir.
“E ele vem, dá volta pro mesmo lugar
Parece até que sabe onde chegar
Andam dizendo que
o agora é tão diferente
e a vida vai passando pela frente”
É um refrão que pega, e eu gosto disso. É uma canção sobre nosso eterno recomeço, os agoras repetidos com cheiro de novo, e o novo já é repetido, o atual com gosto familiar. A letra retrata o encontro ou reencontro com a solidão presente, diante do abandono e da falta. É o processo de renascimento, pós-luto de alguém vivo. Mas sempre há vida, como diria Letrux “sobra vida somente pra quem curte o desvio”.
“Só pra ver” é marcada por uma batida pop com sensação de sonho. É um fundo do poço irreverente. A letra reflete essa necessidade de chafurdar pelos sentimentos e dores “só para ver”, pra se dar conta, talvez. Nossa pulsão de morte, conhecendo o perigo de sair do conforto, escolhemos por ele. A gente vai, mesmo sabendo do desastre, do estilhaço de vidro e da queda, insiste em voltar. É sobre a dificuldade do deixar ir, afinal, o precipício sentimental é pra se jogar mesmo.
“4 AM” é uma faixa que transcende a partir de uma sonoridade celestial, com brilho e mistério. Tem uma levada que percorre elementos orgânicos, e caminhos oníricos em um movimento de introspecção, interiorização. Terceira música apresentada do disco, ela passeia por piano e sintetizadores traduzindo o sentimento da letra em arranjos com poucos elementos
“Deixo a poeira me levar
Corro escorro sem ter hora pra chegar
Me encontro com o dia que já se foi
E eu nem vi
Conto as horas pra ter ver voltar
Saio, ensaio minha vida em você
Deixo o vento arder no peito e me queimar
Pra ascender
Esbarrei num sonho com você
Encontrei um lance em você”
Escrita e gravada naquele ano, “2016” traz à superfície elementos nostálgicos e reflexivos em uma mistura de indie eletrônico com sutilezas de uma balada que envolvem poesia que remete à saudade, aos encontros e desencontros desta vida. É sobre ver o outro voar para outras direções.
“Parou pra ver ela escorregar
Por entre linhas novas
Parou pra ver ela voar
Longe de mim”
Tagua Tagua acerta em cheio na temática de “Inteiro Metade” ao colocar o detalhe, o ponto do bordado não alinhado, a maquiagem que escorre em um borrão e que nos torna humanos. É um disco sobre as nossas dimensões e tudo que damos conta de ser: apaixonados, incoerentes e faltantes. E mesmo depois das mortes, podemos respirar outros ares, em outras bolhas.
“Bolha” é a análise de si mesmo enquanto sujeito e objeto deste mundo. Com uma pegada soul e o um vocal enterrado, a faixa vai subindo ao agregar elementos sonoros e culmina em um refrão sincero, mas nem por isso fácil de admitir.
“Mas queimo na sombra
E nem me assombro
Sou doido demais
Eu fujo de escolha
Eu vivo na bolha
Existencial”
Complicado mesmo é se entender, universos inalcançáveis, como diria o pensador.
“Até cair” é a faixa mais séria do disco, tem peso e quase não tem guitarras, a melodia é feita em sintetizadores e no beat e carrega um tom mais soturno. É a faixa mais séria por refletir o que deve ser a principal lição disso que chamam de existência: o agora e o deixar ir. É uma viagem, nem sempre colorida, pelo que tá dentro, ou pelo que sobrou.
“Nada mais segura o ar desse lugar desabitado
O meu lugar e o teu lugar
Nosso andar descompassado
O teu olhar posso olhar e desvendar todo passado
No caminhar bem devagar a gente sai lado a lado
Acostumar com essa vida de instantes
Eu perco o ar e a vontade
Eu perco tudo tão distante”
“Inteiro metade”, que dá nome ao disco já é conhecida. E ela vem com aquele climão de negação daquilo que aconteceu, do estrago, do acaso que não causou, nas fases do luto, seria a etapa da negação. . Daquilo que não dá pra entender, só fazer doer. É uma melodia tão bonita e corrosiva ao mesmo tempo que leva ao refrão.
“Feito ferro no sal
Eu sou inteiro metade
Risco de verso final
Vou deslizando em saudade
Feito ferro no sal
Eu sou inteiro metade
Risco de verso final
Vou afogando a saudade”
“Inteiro metade” é o como saímos das separações, metadinhas de fusões, paixões e distrações. É aquele verso final que não quer ser escrito, mas o lápis insiste em desenhar.
E como um sopro que carrega a vida pra frente, a penúltima faixa vem com um tom experimental. “Sopro” quer isso, preparar em um estalar de dedos, para a vida que ainda vem, com todos os ciclos, para serem iniciados, sentidos e terminados. O recomeço sopra em pouco mais de um minuto, como aquele pequeno feixe de esperança, quando sentimos o riso da existência a nosso favor.
“Do mundo” encerra com uma melancolia realista o surgimento daquilo que desabou. É a colagem dos cacos depois que o espelho se entrega à gravidade. É ser isso no mundo e do mundo: uma eterna colagem do que nos sobra. É um processo bonito, mas nem por isso indolor.
“Vem, me abraça e me envolve nos teus sinais,
que agora eu sou o mundo, que agora eu sou o mundo, que agora eu sou do mundo.”
“Inteiro Metade” é um disco de clima, de significado e aceitação da natureza humana, das entregas, vazios e pulsões. Tagua Tagua entrega um disco belíssimo em poesias e melodias, para ser sentido, degustado e absorvido, como todas paixões, desilusões e aceitações.
Ariana de Oliveira é canhota de esquerda, Cientista Social, estudante de Jornalismo e comunicadora da Rádio Univates FM. Sobre preferências: vai dos clássicos aos alternativos.