O misterioso e sensacional Sault lança álbum inédito

 

 

 

 

Sault – Acts Of Faith
32′ – 9 Faixas
(Forever Living)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Há alguns anos a gente publicou aqui uma matéria intitulada “Mas, afinal de contas, quem é Sault?” na qual tentávamos destrinchar os mistérios por trás do coletivo britânico. Recomendamos, caso você não tenha ouvido falar dos caras, que a leia antes desta resenha. Para apreciar a totalidade do som e, sobretudo, da proposta do Sault, é necessário levar em conta a postura e as atitudes dos sujeitos, que não dão entrevistas, tiram fotos ou fazer qualquer tipo de divulgação. Seus álbun não têm fotos nas capas, que são todas negras, com algum símbolo ou sinal que a distingue. E mais: o Sault não avisa sobre seus lançamentos, eles simplesmente acontecem quando os canais do grupo nas mídias sociais indicam e apontam os meios para que os álbuns sejam ouvidos. Desta vez, no dia 20 de dezembro, sem qualquer indicação prévia, a conta do grupo no X anunciou “Pray For Me” como single e nada mais. Quem já conhece a trajetória do coletivo, ficou alerta e se preparou para mais novidades. No dia 25 de dezembro, foi lançado então “Acts Of Faith”.

 

Alguns dias antes, o Sault fez sua primeira apresentação ao vivo, em Londres, sendo esta a primeira data de uma turnê mundial, na qual tocará um álbum por cidade. Junto com o misterioso grupo, se apresentaram Cleo Sol, Kid Sister, Little Simz, Chronixx e Michael Kiwanuka que, além do produtor In-Flo, são os supostos líderes, vocalistas e agitadores da coisa toda. Mas, como já dissemos, não há como ter certeza de nenhuma participação, exceto por In-Flo, que é o único que assumiu autoria e responsabilidade pela iniciativa, mas nunca o fez sozinho, sempre mencionando que “há mais gente envolvida” e tudo mais. O que nos deixa com o mais novo álbum, este “Acts Of Faith”, que, a exemplo de tudo que o Sault lança desde 2019, quando iniciou suas atividades, é lindo, bem produzido, de extremo bom gosto e cheio de referências bacanas da música dos anos 1970, especialmente a produção funk e soul americana, ficando num ponto equidistante entre Motown, Philadelphia e outras referências bacanas do estilo. Mas, em “Acts Of Faith”, que é, praticamente, uma suíte entrelaçada de nove canções, dá pra dizer que In-Flo e sua turma miraram em discos como “Innervisions”, de Stevie Wonder ou “What’s Going On”, de Marvin Gaye. E, bem, quase acertaram no alvo.

 

Veja, acertar quase no alvo de obras como estas duas é, nos dias de hoje, demonstrar um imenso poder de criação e inspiração. “Acts Of Faith” é cheio de passagens instrumentais luxuriantes com cordas, guitarras e arranjos que dão espaço generoso para os vocais – não-creditados – passearem por todos os cantos. As linhas de baixo, bateria e percussão são marcantes e gentis, reverberando pelas estruturas das canções com força e, ao mesmo tempo, jeitinho. O arcabouço, como dissemos, é das variantes funk surgidas nos anos 1970, quando o ritmo black sofreu várias mutações e abordagens que foram esticando seus limites e criando, por exemplo, coisas como o synthfunk de Parliament/Funkadelic, que daria em Prince e Rick James ou mesmo a Disco Music, que evoluiu a partir de mutações sofridas pelo funk da Philadelphia International, gravadora que rivalizou com Stax e Motown pela ponta de lança da criatividade da música negra naquela década. De alguma forma, o Sault conseguiu sintetizar essas referências e, sem jamais cair na armadilha fácil da nostalgia, as trouxe para o nosso tempo, com graça, relevância e senso de oportunidade. Sendo assim, além do mistério que envolve os criadores e executores desta música, está, por assim dizer, a própria graça da música em si.

 

As nove faixas de “Acts Of Faith” agem ao mesmo tempo. Explico. À medida que você ouve o álbum, elas vão fazendo sentido como uma só peça, mas, a partir do terço final, quando entra a impressionante “Someone To Love You”, o ouvinte se vê diante de uma canção que se basta e tem vida além do contexto fluido do álbum. Com um arranjo sacolejante e altamente elaborado, a faixa coloca o pessoal do Sault no pódio da temporada, mesmo com ela já chegando ao fim (sorte de quem deixou para fechar suas listas de melhores ao fim de dezembro). Em seguida, “Signs” prossegue no caminho dançante, com um ritmo levemente pendendo para o afrobeat, mas adornado por vocais de apoio e uma bateria rufante que levam a canção para outros tempos, caminhos e esferas. Por fim, o magnum opus do álbum, “Pray For Me”, que parece uma daquelas faixas de gente como Minnie Riperton ou Roberta Flack, cheia de nuances, cordas, idas e vindas. Que lindeza.

 

“Acts Of Faith” é um disco maravilhoso, lindo e cheio de méritos. É como um bálsamo misterioso que chega para curar algumas das lesões e feridas do ano, especialmente aquelas que surgem por teimar em acreditar na beleza e na excelência das canções, álbuns e artistas. Feliz ano novo de novo, pessoal.

 

 

Ouça primeiro: “Someone To Love You”, “Signs”, “Pray For Me”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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