Duas músicas da Legião Urbana em 1991

 

 

A Legião Urbana está entre as bandas cuja história melhor conheço. No entanto, há uma singularidade na minha história com a banda. Até o terceiro álbum, sobretudo nos dois primeiros, e ainda mais no Dois, a apreensão de cada música está ligada à relação com os álbuns. Em outras palavras, a Legião era indissociável de suas obras como um conjunto singular e encadeado de faixas.

 

A partir de As Quatro Estações, minha relação com a Legião Urbana passa por uma mutação. Em parte, claro, porque eu estava mudando, deixando de ser o que era quando tinha 14, 15 anos. De todo modo, deixei de me sentir absorvido, o que não quer dizer não se sentir tocado. A relação deixou de ser com um álbum-banda e passou a incorporar estranhamentos.

 

Continuei curtindo algumas músicas, mas não mais a totalidade dos álbuns. Mesmo com O Descobrimento do Brasil, defensavelmente o ponto máximo da banda nos anos 90, não é diferente. E decidi que seria mais justo – comigo – se assumisse essa posição, com suas limitações, guardando um comentário geral para os três primeiros lançamentos, quando for o caso.

 

Assim, ao lembrar que V está na lista dos álbuns que “entram nos 30” em 2021, algo esquisito acompanhou o impulso de escrever sobre ele. Quase cedi: qual o problema, é só mais uma coleção de faixas sobre a qual poderia comentar. Afinal, a solução foi fazer algo diferente: focar em duas músicas. Às vezes, é recortando que conseguimos dizer mais.

 

 

A Montanha Mágica

 

Com seus quase 8 minutos, essa faixa é a segunda mais longa em um álbum com outras três músicas que ultrapassam a marca dos cinco minutos. Sonoramente, é difícil encontrar coisas parecidas na carreira anterior da banda. Há algo da dinâmica de “Pais e Filhos”, música que, no entanto, tinha uma vocação pop mais evidente.

 

A música começa tranquila, marcada pela guitarra de Dado, com quem dialoga a voz de Renato. No refrão que vem logo, essa voz abre, embora a guitarra continue contida. A repetição do refrão é adiada por um estrofe mais longa. Aliás, essa repetição já leva a uma variação – afinal, essa banda é a Legião Urbana, cujas letras muitas vezes burlam totalmente o sentido do que seja “refrão”.

 

Tem muita coisa pela frente: após a repetição, a música explode, a bateria de Bonfá finalmente se destaca ao lado da guitarra encorpada e da voz elevada. Fantasmagorias surgem por conta de efeitos vocais. Renato canta os últimos versos, novamente o refrão em outra versão (é a Legião Urbana!) e a música muda de registro parecendo que vai retomar à calmaria do início.

 

Mas uma engenhosa costura liga a distorção da guitarra com um último trecho sonoro, este conduzido pelos teclados. O clima é grave, talvez apocalíptico. Agora sim, todos os instrumentos se juntam para uma finalização grandiosa. E a música literalmente morre na praia, com o som de ondas calmas se quebrando. É o final do lado 1 do vinil e não há como não lembrar desse mar quando, no outro lado, escutamos as frases, com ondas muitas mais violentas, de “Vento no Litoral”.

 

Os 43 versos da letra de “Montanha Mágica” ajudam a compor a verdadeira montanha russa que é essa faixa. A leitura mais imediata enxerga a descrição de uma jornada. Mas, como a maioria das músicas da banda que recusam interpretações únicas, há mais coisas ali.

 

É preciso lembrar que Renato Russo compõe as músicas de V sob o impacto da turnê de As Quatro Estações, quando seu envolvimento com algumas drogas atingiu um alto pico. Elas estão simbolizadas na “papoula da Índia” e na “flor da Tailândia”, imagens cândidas para coisas que “fazem tão mal”, que são parte do refrão da letra.

 

“A Montanha Mágica” é o relato de alguém tentando ficar longe das drogas, sofrendo a abstinência, vislumbrando um novo controle. O relato de alguém que precisava ficar longe delas se quisesse viver mais. Pois outro ponto é que, entre o quarto e o quinto álbuns, Renato fez o exame que revelou ter contraído o vírus associado à AIDS.

 

Faz sentido então a ideia de uma jornada. Literalmente: “ando em círculos”, “meu joelho dói”. Em meio a referências à vida preenchida pelas drogas – e elas não são apenas negativas: “O que é que desvirtua e ensina?” – Renato busca uma cura. Talvez por isso a citação no título da música ao nome do livro clássico de Thomas Mann, que se passa em um sanatório para tuberculosos.

 

Mas o relato dessa jornada vem salpicada por fios de outras meadas. “Não é coincidência a minha indiferença” é um verso que já fora parte da composição da letra (“1977”) que levará a “Tempo Perdido”. É interessante como esse verso vai migrar de uma música que nos faz sentir sempre “tão jovens” para outra em que o cantor constata: “O que temos é o que nos resta / E estamos querendo demais”.

 

E há a estrofe das crianças com canivetes e de líderes com seus revólveres. Em uma leitura possível, remete para o que vivia o Brasil naquele ano de 1991. Como a banda gosta de marcar: “esse é o álbum do Collor”. Sob a presidência do “caçador de marajás”, os índices sociais degringolavam. Em V, nenhuma canção capta melhor esse clima desanimador do que “O Teatro dos Vampiros”.

 

Uma performance notável de “A Montanha Mágica” está registrada em Música p/ Acampamentos. Ela vem de um programa da Rádio Transamérica transmitido originalmente em julho de 1992. O trio vinha acompanhado pelos músicos da turnê. Tavinho Fialho substituíra Bruno Araújo, que gravara o baixo nas faixas do álbum. A segunda guitarra de Sérgio Serra reforça o time. E as mãos de Carlos Trilha nos teclados fazem acréscimos sutis mas significativos.

 

O resultado é uma versão mais pesada e densa. As guitarras acompanham a voz ascendente de Renato desde o primeiro refrão. E antes da parte apocalíptica, o vocalista solta um grito que transforma esse final em uma catarse. Arrepiante.

 

Renato canta trechos de três outras músicas. Essas inserções acrescentam outra dimensão à letra de “A Montanha Mágica”, a dos relacionamentos que animavam e atormentavam o compositor. São três clássicos: “You’ve Lost That Lovin’ Feelin”, cuja gravação original é de 1964 na interpretação de The Righteous Brothers; “Jealous Guy” e “Ticket to Ride”, que dispensam apresentações. Renato muda a letra da canção dos Beatles: não é uma mulher que vai embora sem se importar, mas um homem. O “he” é pronunciado como um cuspe na cara de qualquer homofóbico. E assim termina a música, não mais em uma praia calma, mas na despedida transtornada pelo abandono.

 

Na estrofe final de “A Montanha Mágica”, Renato promete que vai “mudar a vida” e diz querer “um dia de sol n’um copo d’água”. Como se tempestades não fizessem parte de copos d’água… Afinal, Renato não resolveria suas questões com as drogas. Elas reaparecem já na turnê de V, que teve seu encerramento antecipado para evitar uma espiral ainda mais descendente.

 

 

Sereníssima

 

Esta música mostra um outro lado da Legião. Ela destoa do clima geral de V, repleto de antiguidades e gravidades, bem exemplificadas em “Metal contra as Nuvens”, outra jornada que quer atingir um improvável final feliz. Em um álbum que a banda apresenta como “lento”, “Sereníssima” é rápida, no seu andamento e na sua duração, meros quatro minutos.

 

“Sereníssima”, ao contrário de “A Montanha Mágica”, é uma música que poderíamos encontrar em outros álbuns da banda. A ambiência acústica, dominada pelo violão, com um trecho que destaca o solo de guitarra, lembra “Eu Sei”, que é mais devagar. Ao escutá-la, ficamos lembrando da influência de The Smiths sobre a Legião, mas penso que uma aproximação mais pertinente é com músicas semelhantemente acústicas da R.E.M.

 

Sua estrutura é simples. Duas estrofes conduzem a outra parte melódica. Seria o refrão, se a letra tivesse refrão. Não tem, pois é a Legião. Depois desse falso refrão, temos o breve solo de guitarra, retoma-se a melodia inicial, mas a bateria cresce para introduzir uma pausa na música. Entra então a penúltima estrofe e novamente o refrão melódico. Só que em vez de subir a voz, Renato conduz a música para seu final, sem surpresas. Simples.

 

Mas nas entrelinhas há alguma complexidade. O riffzinho de guitarra dialoga com a voz de Renato dentro de cada verso. O ritmo do fraseado sonoro entrecorta o fraseado lírico, gerando, com a colaboração da bateria irrequieta, uma dinâmica que anima a música. Isso: “Sereníssima” é animada.

 

Nessa animação, há um descompasso parcial com a letra, pois ela trata de desencontros. “Tínhamos a ideia, você mudou os planos/ Tínhamos um plano, você mudou de ideia”. A papoula dá lugar à laranjeira, mas dois versos de “A Montanha Mágica” meio que conversam com “Sereníssima”: “O mecanismo da amizade / A matemática dos amantes”.

 

Não sabemos se a letra, que não tem nenhuma repetição, é sobre amor ou amizade. Sim, ela trata de um desencontro, mas sem a “sofrência” que povoa tantas letras de Renato, especialmente nos anos 90. O que é interessante em “Sereníssima” é exatamente sua animação e podemos encontrar versos que a reforçam. Porém, não em um registro que sempre me pareceu algo forçado. Em V, temos o exemplo de “O Mundo Anda Tão Complicado”. É mais ou menos assim: o mundo tá foda, então vamos fazer uma feijoada. Acho que esse era o Renato que queria passar algo positivo para seu público, especialmente depois do trauma que foi o show de 1988 em Brasília.

 

Em “Sereníssima”, a animação é de outra ordem. Ela se expressa em versos de impacto: “Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade / Tudo está perdido mas existem possibilidades”. Ou: “Não acredito em nada além do que duvido”. Ou seja, tem mais a ver com alguém que, no desencontro e na decepção, na confusão e loucura do tempo, lida afirmativamente com seus extremos, com seus contrastes. Assim termina a letra: “Tenho um sorriso bobo, parecido com soluço / Enquanto o caos segue em frente / Com toda a calma do mundo”. Uma serenidade animada.

 

Esse sujeito aparece nas gravações do que seria o Acústico MTV, que serviu para divulgar parte do repertório do V. Como conta Chris Fuscaldo em seu livro, Renato estava hesitante sobre fazer o programa. Mas na maior parte do tempo da apresentação de janeiro de 1992, mostrou-se bem-humorado e espirituoso. “Sereníssima” é uma das músicas registradas no álbum.

 

A simplicidade da versão original ajudou na transposição. Na verdade, “Sereníssima” já nasce acústica. O que surpreendeu foi a participação da plateia. Em V, a faixa traz alguns efeitos que simulam gritos do público, no estilo das fanáticas audiências dos Beatles. Quando, nos estúdios da MTV, a música fez a pausa, a plateia não vacilou: gritou exatamente como ouvimos na versão do álbum. Renato ficou desconcertado a ponto de parar e agradecer.

 

Se a “Montanha Mágica” é a jornada de Renato lidando pesadamente com seus demônios, “Sereníssima” é a simplicidade de quem não se rende ao caos do mundo (e de si). A performance na MTV confirma, com a participação dos/as fãs, como a Legião (também) era animada.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

2 thoughts on “Duas músicas da Legião Urbana em 1991

    • 20 de junho de 2021 em 14:12
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      Muito obrigado pelo comentário, Ricardo. li o seu texto, é uma ótima resenha do V. A Legião tem uma capacidade incrível de se comunicar com diferentes gerações e experiências.

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