As Geringonças Vivas de Tom Waits

 

 

 

1992 foi um ano bastante generoso com o rock. Quando a sonoridade e a estética do hard rock pareciam se esgotar, o grunge pegou o bastão. Uma das provas dessa energia roqueira pode ser vista em Bone Machine, o décimo-primeiro álbum de Tom Waits. Seus 30 anos valem uma celebração.

 

 

Ainda mais porque Waits não era uma figura do mundo do rock. Sua raiz, quando começou a carreira nos anos 70, é o jazz. Nos anos 80, essa raiz se espraia, abrindo os horizontes do artista. Em Bone Machine, com Waits em seus 42 anos, ocorre uma aproximação com o rock, mesma época em que confessa sua admiração pelo rap.

 

 

Confesso que seria incapaz de avaliar o álbum de 1992 considerando a totalidade da carreira do artista. Se cometo o disparate de escrever estas linhas, é exatamente para marcar esse movimento em direção ao rock, uma das possíveis leituras sobre Bone Machine. E se meus comentários servirem para chamar a atenção para outros momentos da obra dessa figura singular que é Tom Waits, melhor ainda!

 

 

A aproximação com o rock pode ser acompanhada em um curta metragem que tem a atuação de Tom Waits. Note-se, aliás, que o cinema era outra área a que o artista se dedicava. A partir dos anos 80, multiplicam-se suas aparições nas telas, impulsionadas por O Fundo do Coração, filme de Coppola. Nas mãos do mesmo diretor, e no mesmo ano de Bone Machine, Waits participaria de Drácula.

 

 

Outro diretor com quem Waits empreendeu várias parcerias é Jim Jarmusch, alguém com um admirável ouvido musical. A relação começou em 1986, com Daunbailó. Waits compôs a trilha sonora para Night on Earth, de 1991, no qual também atuou. O curta metragem que comento aqui foi dirigido por Jarmusch e divulgado em 1993. Ele se chama Coffee and Cigarettes.

 

 

Filme de cenário único, se passa em uma cafeteria mobiliada com uma jukebox. Tom Waits contracena com Iggy Pop – e aí já há um aceno para o universo do rock. Os personagens são os próprios artistas. Além de conversarem sobre café e cigarros, claro, há um trecho em que Iggy comenta sobre um ótimo baterista com quem tocou. Ele sugere que Waits deveria conhecê-lo. Waits retruca: “então você acha que preciso de um baterista profissional? Não sou bom o bastante?”

 

 

Não vou dar mais spoilers sobre o curta, basicamente uma conversa entre dois músicos que dá errado. Destaquei a parte sobre o baterista porque ela remete a Bone Machine, muito mais do a qualquer outro álbum de Waits. Os elementos percussivos se destacam no álbum e na maior parte das vezes é o próprio Waits que comanda as baquetas.

 

 

A importância da percussão revela-se ainda no Conundrum. Foi o nome que Waits, um apreciador das palavras, deu a uma composição de peças de metal, arranjadas para formarem uma cruz que ficava pendurada no estúdio. Essa geringonça – que lembra algumas das esculturas de Jean Tiguely – ressoa em várias faixas de Bone Machine.

 

 

Aliás, o nome do álbum está diretamente ligado a essa ênfase na percussão. Não mais como parte do instrumental, mas como ambiente conceitual. Em entrevistas da época, compiladas no livro de Paul Maher Jr., Waits confessa sua obsessão com sons e seres maquínicos, referindo-se às músicas como geringonças que, ao contrário da conversa com Iggy Pop, acabam dando certo.

 

 

A maneira pela qual Waits fala sobre suas composições, como se fossem máquina vivas, é fantástica: “Às vezes, uma música surge do nada. Outras vezes, você persegue uma música por alguns dias e acaba sem nada. Então você tem que trazê-las de volta de onde você as encontrou. E às vezes elas escapam. Às vezes elas morrem. Às vezes elas ficam doentes e depois morrem. Às vezes elas matam você.”

 

 

Oito das 16 faixas de Bone Machine têm a contribuição de Kathleen Brennan, companheira de longa data de Waits. Brennan foi uma influência fundamental para a mudança de rumos que a carreira do músico tomou nos anos 80. Os temas que percorrem as letras do álbum também trazem a marca da educação católica de Brennan e seu gosto por histórias de crimes.

 

 

A atenção à percussão teve ainda outros impactos sobre Bone Machine. Após instalar-se com a banda no Prairie Sun Recording Studios em Cotati, Califórnia, Waits não ficara satisfeito com a sonoridade da primeira sala. Acabaram se mudando para uma construção auxiliar, um antigo viveiro de ovos com chão de cimento. Ali sim as baquetas tilintavam como Waits, que trabalhou como seu próprio produtor, esperava ouvi-las.

 

 

Por outro lado, o destaque à percussão não se dá em todas as faixas do álbum. Em “Dirt in the Ground”, uma canção sobre mortalidade em uma terra devastada, o principal instrumento é o sax de Ralph Carney. Em seu andamento e timbre, lembra o que PJ Harvey faria na abertura de The Hope Six Demolition Project.

 

 

“Who Are you”, “A Little Rain” e “Whistle Down the Wind” remetem às canções bêbadas que povoam a discografia de Waits. Servem também para nos fazer notar algo que vale para o álbum como um todo: a voz de Waits, com suas variações e intensidades, é um dos principais instrumentos de suas músicas.

 

 

Outro instrumento muito presente em Bone Machine é a guitarra, e também por isso podemos ver a aproximação com o rock. No caso das guitarras, a principal base é o blues. A tal ponto que Bone Machine merecia ter sido citado ao lado de outros registros em que, no início dos anos 90, ocorre certa aproximação entre rock e blues.

 

 

A importância do blues está em sintonia com uma das declarações de Waits feitas na época: “A única coisa realmente vital neste país, que está em constante evolução e elaboração, a única verdadeira música americana é a música negra da América”. Ao lado do blues, o gospel é outra referência recorrente em Bone Machine.

 

 

Além das três canções já mencionadas, a guitarra protagoniza “Black Wings”, com um vocal que lembra Leonard Cohen sobre uma atmosfera faroeste. Totalmente blues é “Jesus Gonna Be Here”, cuja letra explicita as referências bíblicas que emergem em algumas músicas do álbum.

 

 

“I Don’t Wanna Grow Up” tem uma levada feita basicamente sobre violão e guitarra. E as cordas eletrificadas voltam a ganhar protagonismo na faixa que fecha Bone Machine, “That Feel”, que traz a colaboração, na composição e execução, de ninguém menos do que Keith Richards.

 

 

Em “That Feel” a percussão tem um papel maior em comparação com as demais faixas já citadas e assim temos a deixa para comentar as restantes. A começar pela faixa de abertura, “Earth Died Screaming”, com seus temas apocalípticos.

 

 

Desde seus primeiros sons, uma sinfonia dissonante de baquetas, “Earth Died Screaming” estabelece a atmosfera singular de Bone Machine. O vocal oscila entre algo quase falado e contido e o refrão rouco e alucinado. Nessa faixa, o “titular” do baixo, Larry Taylor, colaborador de Waits desde os anos 80, cede o instrumento para Les Claypool, figura da cena contemporânea do rock como líder da Primus.

 

 

O Conundrum destaca-se em “In the Colosseum”, uma canção-carnificina, e em “The Ocean Doesn’t Want Me”, que narra uma tentativa de suicídio. “Murder in the Red Barn”, outra totalmente blues, consolida a morbidez de Bone Machine, com uma história de assassinato em algum confim rural. A vinheta “Let Me Down Up on It” delira sobre uma base de sons percussivos estranhos.

 

 

A guitarra volta a brilhar em “All Strip Down”, outra música com referências bíblicas. “Such a Scream” quebra o clima lírico, pois é uma (bizarra) canção de amor; sonoramente, está bem em sintonia com outras em que predominam percussão e guitarra, nesse caso sugerindo um cruzamento improvável entre a atmosfera quase caribenha e algo que remete a Screamin’ Jay Hawkins.

 

 

Finalmente, temos em Bone Machine “Goin’ Out West”, talvez a faixa mais rock. Embebida na sonoridade marcante do álbum, é uma espécie de blues industrial, com toques noir nos riffs de guitarra. Nela explode toda a selvageria do álbum, bem captada pelo videoclipe, em cujas imagens reconhecemos a fotografia que estampa a capa da obra.

 

 

A letra fala de um sujeito desvariado em sua rota rumo ao oeste. É mais um dos personagens criados por Waits que desfilam nas letras de Bone Machine. Não era só nas telas que Waits gostava de interpretar. Não esquecemos que, além da música e do cinema, o californiano também tem em seu currículo a dedicação ao teatro. The Black Rider, o álbum posterior de 1993, é um entre outros preenchido com a trilha sonora para peças teatrais.

 

 

“Goin’ Out West” se tornou a “música de trabalho” de Bone Machine, se é que se pode falar disso quando a sua gravadora, a Island, não divulgou nenhum single com suas faixas, nem houve uma turnê para promovê-lo. Consta que ocorreu apenas um show de Tom Waits em 1992, quando ele apresentou várias músicas do álbum no palco dividido com os rapazes da Fishbone.

 

 

A parceria desse palco pode ser tomada como outra das indicações que ligam Waits ao rock. Não percamos as contas: Keith Richards, Les Claypool e ainda Brain, percussionista em duas faixas do álbum, que adiante tocaria com Primus e Guns N’Roses. Mais pistas: duas das várias reaparições de “Goin’ Out West”, as versões criadas por Queens of the Stone Age e Gomez, já neste século que nos abriga.

 

 

Mas, se procurarmos nesse universo do rock, certamente a versão mais conhecida de uma canção de Tom Waits aproveita outra faixa de Bone Machine, a já citada “I Don’t Wanna Grow Up”. Afinal, os responsáveis foram os Ramones, que a incluíram em seu último álbum, ¡Adios Amigos!, de 1995.

 

 

Não deixa de haver algo muito rock’n’roll quando Waits confessa ridiculamente na letra composta em companhia da esposa: Eu não quero deslizar sobre um esfregão [ou: Eu não quero passar sob a chuva de arroz] / Me apaixonar, depois me casar e então, bum! / Como diabos isso aconteceu tão rápido? / Eu não quero crescer.

 

 

“I Don’t Wanna Grow Up” nos leva de volta a Jim Jarmusch, que dirigiu o videoclipe da música. Nele, o personagem a que somos apresentados em “Goin’ Out West” aparece de corpo inteiro, ao som de “Let Me Down Up on It”. Uma espécie de Mefistófoles infantil, com chifres, capa e sapato de salto vermelhos, divertindo-se com uma bicicleta em um terreno de chão batido.

 

 

Concluída a introdução, reconhecemos o cenário de Coffee and Cigarettes. Só que dessa vez toda a ação transcorre sob a mesa. Ali, Tom Waits faz a performance espremendo-se diante de um microfone em miniatura e empunhando uma guitarra de brinquedo. Genial!

 

 

O adulto-criança e o mefistófoles-infantil sintetizam bem parte dos personagens e das histórias que desfilam nas geringonças vivas de Bone Machine. Sua qualidade e seu estilo foram devidamente reconhecidos na premiação do Grammy como “melhor álbum alternativo” de 1992, chegando na frente dos demais indicados (The B-52′s, The Cure, Morrissey e XTC). Mesmo com os pés muito mais fora do rock do que esses outros nomes, Tom Waits produziu algo notável com suas máquinas sonoras.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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