O primeiro disco de Kelly Key faz 20 anos

 

O tempo, meus amigos e amigas, passa. Em agosto deste 2021, o álbum de estreia da Kelly Key vai completar 20 anos. Quem estava por aqui em 2001 lembra do efeito que ele causou na mídia e o quanto as dez canções que ele contém são interessantes. Kelly disputava heroicamente o mercado com Sandy & Junior e com cantoras gringas como Britney Spears e Christina Aguilera. Em termos automobilísticos, ela era o nosso bravo Gurgel X-12.

 

Na época eu escrevi um texto sobre o sucesso da menina, meses após o lançamento do álbum, e enviei para o meu amigo Marcelo Costa publicar no seu sensacional Scream & Yell. O texto foi parar no verbete da cantora na Wikipedia.

 

Como forma de lembrar do álbum e da passagem do tempo, trago de volta o texto para vocês. Ele ficou adoravelmente datado e o rumo da carreira da cantora o tornou um objeto de rara insurgência contra caretice. Podemos dizer que não teríamos Anitta hoje em dia se não houvesse uma Kelly, do jeito que ela foi, em 2001.  O original do texto está neste link aqui.

 

 

 

Você conhece uma menina chamada Kelly de Almeida Afonso? Tem dezenove anos recém completados, é loura falsa, tem uma filha de dois anos e é casada com uma das figuras mais iconoclastas do pop nacional recente. Não sabe? Parou de ler a coluna aqui? Tudo bem.

Estou falando de Kelly Key. Isso mesmo. Ela mesma. Ora, não feche a cara, KK é cultura pop em estado bruto, pronta para uma análise “com contornos sérios”, exatamente como faríamos com o último disco do Oasis ou com o lançamento nacional do disco do Cosmic Rough Riders.

 

Ao longo da década de 1990 a atitude contestatória foi sendo gradativamente banida do pop nacional. Pontuado por axés alienados, pagodeiros românticos, Sandy e Júnior, sertanejos cornos, cantoras genéricas e roqueiros bonzinhos, o pop brasileiro virou um lugar chato de se visitar. Todo mundo conformado com a mulher/homem que se foi, rimando “paixão” com “emoção”, “amor” com “dor” e se afundando em copos de cerveja para não reconhecer a própria cara na manhã seguinte. Ou falando de páginas de livro com cheiro da pessoa amada, que também se foi. Nunca, repito, nunca mais ouvimos uma música com alguém que tivesse chutado a outra pessoa a quilômetros de distância ou tivesse dito “não” para um relacionamento que potencialmente fosse causar sofrimento. Kelly Key provavelmente é a “pessoa que foi”. No nicho de mercado habitado por ela habita o mais pré-fabricado bom mocismo hipócrita da juventude.

Sandy e Júnior são baluartes do boletim escolar todo azul, do dever de casa, da não saída com os amigos e da ausência total de sacanagem juvenil. E o pior, não há similares ou concorrentes para eles, tão absolutos que estão na posição de teens brasileiros oficiais para exportação. Mas Kelly entrou na onda. De cara (e corpo) já dá pra ver a diferença. Loura falsa, cara de menina, corpão de academia, agradecendo a Jesus o seu sucesso e dona de uma inegável simpatia, Kelly é a antítese da Sandy. Lançou um disco pela Warner, com produção artística de Tom Capone e mixado em Nova York. Permito-me dizer que o disco é 100% verdadeiro.

 

Tem de tudo: letra de menina pervertida que deu em cima do cara mais velho e levou um chute para depois se vingar (Baba); letra de menina taradinha que diz pros pais que vai ao shopping mas na verdade vai pro motel (Escondido); letra de menina mais ou menos decidida que dá um chute no cara chiclete que quer namorar enquanto ela só quer “ficar” (Só Quero Ficar); letra de menina que sente a traição do namorado através do seu sono (Bolada, que tem um maravilhoso erro de português na letra do encarte, trocando a grafia de cínico para “SÍNICO”) e letra de mulher que domina o namorado sem perdão ou misericórdia (Cachorrinho). Na verdade Kelly parece ser desse jeito mesmo. Casou com o Latino, um sujeito picareta e muito mais velho que ela, teve uma filha com o cara e, com certeza, viveu. E quem viveu sabe como é a vida.

 

A maioria da população feminina adolescente brasileira, em condições de consumir cultura está potencialmente mais próxima do discurso de KK que da assepsia global de Sandy. As meninas que pintam as unhas de acordo com a novela das oito, que estão se enamorando pela primeira vez por um menino bobão que não as vê, que não perdem as “Malhações” da vida estão mais próximas da música dançante da falsa lourinha do que da sertaneja mirim. O mais cativante no caso de Kelly Key é o fato de mulheres muito mais velhas que ela se identificarem com suas músicas de “girl power”, compartilhando da vingança contra algum cafajeste do passado. A mulher sempre ganhou do homem neste jogo.

 

Como a sociedade machista nunca admitiu isso, o Brasil ainda não havia visto algo assim. Mulheres no poder. Talvez as jurássicas Frenéticas tenham ensaiado algo no gênero nos distantes anos 1970, mas a coisa acabava na pista de dança. Kelly Key vai mais longe e empunha, talvez sem ter idéia de o está fazendo, uma bandeira de auto-estima feminina, perdida há um bom tempo no Brasil. O público está mostrando que aprova a coisa toda, comprando mais de 100 mil cópias do disquinho de dez músicas, todas de autoria dela e de gente desconhecida da maioria, mas medalhões do que se entende por “charme” aqui no Rio de Janeiro, DJ Cuca e Afegan. Isso mesmo, amigos, nenhuma versão de música da Celine Dion ou do Savage Garden.

 

E Kelly ainda dedicou a bolachinha para sua avó Hermínia, “a grande incentivadora de seu trabalho”. Contradição, adolescência, provável verdade, isso é uma menina de 19 anos. Minha candidata no prêmio Multishow deste ano. Se eu participasse dessas armações, claro.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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