Dissecando covers feitas pelo U2

 

Você já deve ter ouvido a versão que o U2 fez para “Get It On (Bang A Gong)”. Não ouviu?  Então ouve aqui embaixo que eu te espero.

Ouviu? Gostou? Meio chata, né? Sem sal.

 

Ainda que a música seja sensacional e à prova de falhas, o quarteto irlandês conseguiu fazer apenas uma releitura protocolar. E olha que ainda tivemos a presença de Elton John nos pianos e vocais. Dizem que Tia Elton foi o encarregado das teclas na gravação original do T.Rex, contida em seu sensacional álbum de 1971, “Electric Warrior”. Segundo consta, o responsável teria sido Rick Wakeman, então no Yes. Mas tudo bem, ninguém discute a genialidade de Marc Bolan, o compositor da canção e o homenageado no recente tributo “Angelheaded Hipster”, no qual um batalhão de vinte e tantos cantores, cantoras e grupos estiveram relendo a obra do sujeito, com resultados que beiram a decepção total. A gente resenhou aqui, veja.

 

O fato é que esta cover do U2 acendeu esta pequena polêmica nas redes sociais. Teve gente que detestou, teve gente que gostou, teve gente que ponderou, mas ninguém deixou de ouvir. Meu colega no podcast O PAPO É POP, Marcos Bragatto, achou que a gravação tem metais sensacionais, tecladeira do Elton John, chegando até a suspeitar que eu tivesse ouvido uma versão incompleta da faixa, uma vez que ela foi a última a ser divulgada, mesmo depois do lançamento do tributo. Meu amigo Zeca Azevedo, colunista aqui da Célula, fez uma boa relativização do lançamento, dizendo que a gravação não é execrável, mas que o U2 não tem groove (certo) e que trata-se de uma faixa sem graça.

 

Diante disso, resolvi dar uma revirada no baú de covers que a banda irlandesa já gravou ao longo dos tempos e analisá-las, separando o joio do trigo. Entre as versões registradas, há momentos sensacionais e definidores, mas também há casos para chamarmos o Procon. Enumero todas aí embaixo, ressalvando que o U2 é um grupo que gosta de fazer versões incidentais e medleys juntando seus originais a outras músicas quando está no palco. Deixei-as de lado, ok? A única exceção é “Power To The People”, que eles soltaram recentemente, no DVD “Innocence + Experience: Live in Paris”, de 2015. As demais canções na lista têm, pelo menos, sua disponibilidade garantida nos serviços de streaming. Vamos ver.

 

 

– Helter Skelter (Beatles) – 1988 – gravada pela banda ao vivo e registrada em “Rattle & Hum”. É uma boa versão, com muita participação do público e a frase “essa música foi roubada dos Beatles por Charles Manson. Estamos pegando de volta”. Mesmo com o esforço de Bono e da banda, o resultado final é apenas ok.

 

 

– All Along The Watchtower (Bob Dylan) – 1988 – outra faixa contida em “Rattle & Hum”, esta versão do clássico dylanesco, já surrupiada em 1968 por Jimi Hendrix, é outro exemplo de uma releitura apenas ok. Bono novamente se esforça mas há pouca guitarra no arranjo, o que é sempre uma pena, em se tratando de um cara talentoso como The Edge.

 

 

– Everlasting Love (Carl Carlton) – 1989 – lado B do single de “All I Want Is You”, esta versão aqui é uma lindeza ensolarada. “Everlasting Love” teve sua presença marcante com o cantor Carl Calton, que a gravou em 1973. Bono e banda fazem uma releitura acústica e a bela melodia faz o resto.

 

 

– Unchained Melody (Righteous Brothers) – 1989 – outro lado B de “All I Want Is You”, registrada um pouco antes da canção ganhar fama renovada por conta da inclusão do original na trilha sonora de “Ghost”, em 1990. O arranjo que o U2 faz é claustrofóbico e desesperado, como pede a letra. Uma boa e audaciosa releitura.

 

 

– Dancing Barefoot (Patti Smith) – 1989 – lado b de “When Love Comes To Town”, faixa em que o U2 dividia os vocais com BB King. A cover para o clássico de Patti Smith também surgiu na trilha sonora de “Threesome”, em 1994. Trata-se de uma das melhores releituras já feitas pelo U2. Arranjo psicodélico e cinzento, a melodia falando por si e o grupo numa postura mais reverente. Belezura.

 

 

– Night And Day (Cole Porter) – 1990 – a melhor cover já feita pelo U2. Fez parte do álbum beneficente “Red, Hot & Blue”, lançado para arrecadar fundos para a pesquisa da cura da AIDS e trazia várias bandas e artistas com versões de clássicos da canção americana, compostos por Cole Porter. O arranjo dançante, o abraço à eletrônica e a produção de Brian Eno fazem a canção renascer em uma nova e fascinante criatura, dando pinta do que a banda vinha tramando para “Achtung Baby”, seu álbum de 1991. Sensacional, pra dizer o mínimo.

 

 

– Satellite Of Love (Lou Reed) – 1992 – entre 1990 e 1993, o U2 foi a melhor banda em atividade no planeta. Criativa, audaciosa e relevante. E com um punhado de covers sensacionais aqui e ali. Esta versão é melancólica e apropriada, ainda que o falsete de Bono estrague um pouco as coisas. Fez parte do single de “One”.

 

 

– Paint It Black (Rolling Stones) – 1992 – clássico absoluto dos Rolling Stones, a canção veio como lado B de “Who’s Gonna Ride Your Wild Horses” e traz um arranjo tenso, mas que dilui o drama do original em uma levada um pouco mais rápida, na qual se destacam os vocais de apoio de The Edge.

 

 

– Fortunate Son (Creedence Clearwater Revival) – 1992 – outro lado B de “Who’s Gonna Ride Your Wild Horses”, esta cover segue o mesmo nível de “Paint It Black” ao trazer um clássico da segunda metade dos anos 1960 com a abordagem dos irlandeses naquele início de anos 1990. O original, de 1969, dos californianos do Creedence Clearwater Revival, é uma crítica mordaz ao envio de filhos de pobres ao Vietnã enquanto os herdeiros de políticos eram poupados das loterias de convocação para a guerra.

 

 

– I’ve Got You Under My Skin (Cole Porter) – 1993 – não é a banda completa que participa desta bela gravação, mas apenas Bono. Só que incluímos aqui por conta dela ter surgido como lado B do single de “Stay (Faraway So Close)”, além do registro principal, em “Duets”, compilação que Frank Sinatra lançou em 1993. O arranjo é tributário das clássicas gravações de Frank mas a voz de Bono tempera tudo muito bem e o resultado é sensacional.

 

 

– Mission Impossible (Lalo Schifrin) – 1996 – união sensacional de Adam Clayton e Larry Mullen Jr, a cozinha do U2, que se dedicou a refazer o tema clássico de Missão Impossível para o ótimo reboot da série em forma cinematográfica em 1996, com Tom Cruise assumindo o papel de Ethan Hunt.

 

– Beat on the Brat (Ramones) – 2003 – faixa-título ao disco em homenagem aos Ramones. Trata-se de uma das piores covers já feitas pelo U2. Tudo está errado aqui, sem exageros. Se alguém me dissesse que Bono e cia detestavam os Ramones e, por isso, destruíram a canção, eu acreditaria facilmente.

 

 

– Neon Lights (Kraftwerk) – 2004 – original do Kraftwerk, fase “Man-Machine”, esta bela
releitura surgiu como lado b de “Vertigo”, faixa que puxou “How To Dismantle An Atom Bomb”. Com arranjo climático e nada eletrônico, o U2 faz o caminho contrário do passado, oferecendo uma versão que se tornou predileta em shows. A crítica futurista do original dá espaço a uma conformada e melancólica constatação no presente. Que já passou.

 

 

– Instant Karma (John Lennon) – 2007 – faixa presente numa compilação da Anistia Internacional para ajudar Darfur, no Sudão, devastada pela fome e pela guerra na independência do Sudão do Sul. As canções são todas de autoria de John Lennon e a releitura do U2 é protocolar e sem muita criatividade, mantendo-se no nível ok.

 

 

– I Believe in Father Christmas (Greg Lake) – 2008 – canção composta em 1975 por Greg Lake, lançada em 1977 no álbum “Works vol.2”, do Emerson Lake And Palmer. Ao contrário do que parece, esta não é uma canção de Natal, pelo contrário: é uma crítica à comercialização da data.

 

 

– Happiness Is A Warm Gun (Beatles) – 2010 – lançada num CD de remixes chamado “Artificial Horizon”, esta versão é uma das incursões da banda pelo mundo da eletrônica e das releituras audaciosas do passado noventista. Ainda que haja boa intenção e a participação de Danny Saber nas remixagens, o resultado é fraco e não faz jus ao original ainda imaculado dos Beatles.

 

– People Have The Power (Patti Smith) – 2015 – original composto por Patti Smith e gravado em seu disco de 1989, “Dream Of Life”. O U2 usou a canção para abrir sua turnê “Innocence + Experience” em 2015 e ela foi associada ao atentado que os americanos do Eagles Of Death Metal sofreram na casa noturna Le Bataclan, em Paris, no dia 13 de novembro daquele ano. As duas bandas se encontraram ao vivo, no dia 06 de dezembro, para fazer uma versão especial da canção. A versão do U2 é boa.

 

 

 

– What’s Going On (Marvin Gaye) – 2017 – lançada como lado B num tal de “Spotify Singles”, esta versão do clássico absoluto e atemporal de Marvin Gaye é correta, mas não acrescenta ou subtrai nada. É o U2 em modo piloto automático.

 

 

Em tempo: voltando à cover do U2 para “Get It On (Bang A Gong)”: ouça a versão que a dissidência do Duran Duran, Power Station, fez em 1985. É bem mais interessante e audaciosa.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *