Crônicas de um relacionamento agonizante

 

Bobby Gillespie & Jehnny Beth – Utopían Ashes

Gênero: Rock alternativo

Duração: 39:42 min.
Faixas: 9
Produção: Bobby Gillespie, Jehnny Beth
Gravadora: Third Man Records

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Bobby Gillespie é o líder do Primal Scream, aquela banda escocesa sensacional, que misturou sons eletrônicos e rock nos anos 1990. Jehnny Beth era líder do grupo Savages há até pouco tempo, além de atriz e ter engatado uma carreira solo com um bom disco em 2020 – “To Love Is To Live”. Este par de pessoas engajadas, artísticas e relevantes resolveu se unir para criar e executar um álbum conceitual sobre o fim de um relacionamento amoroso, com nove canções feitas sobre o tema e adornadas com arranjos que evocam, ao mesmo tempo, o country-soul de gente como Glen Campbell e os momentos mais dilacerados de artistas como Neil Young. Além disso, há uma inegável revisita a algumas sonoridades noventistas, no sentido The Verve/Oasis do termo, algo muito sutil e que pode passar despercebido pelos ouvidos menos sensíveis. O fato é que a dupla conseguiu fazer um disco em que não soa em nada como suas bandas originais e que, mais ainda, consegue agregar novas habilidades às que já possuia. Em muitos momentos, as canções de “Utopian Ashes” são belíssimas, verdadeiras e cativantes. Vamos ver isso.

 

É surpreendente que tanto Bobby, quanto Jehnny estejam unidos em torno deste projeto temático/conceitual. Em nenhum momento de suas carreiras seria possível notar alguma afeição pelas sonoridades que estão na mesa em “Utopian Ashes”. O terreno, no entanto, não é tão estranho assim, uma vez que há outros três integrantes do Primal Scream na banda que acompanha a dupla ao longo das nove faixas do álbum. Mais do que isso: o parceiro de Jehnny, Johnny Hostile, também está presente, tocando baixo. Não é agora que um casal surge como protagonista de um álbum sobre um relacionamento amoroso: Gram Parsons/Emmylou Harris e Tammy Wynette/George Jones são apenas dois exemplos desta seara. Sendo assim, canções com títulos da ordem de “Remember We Were Lovers”, “Your Heart Will Always Be Broken”, “Living a Lie” ou “You Don’t Know What Love Is” se adaptam totalmente ao que está em mente por aqui, que é oferecer música bela, melódica … e triste.

 

 

A melancolia está por todos os cantos do álbum, ainda que não haja depressão ou algo mais extremo. É um contemplar da tristeza, uma vivência experimentada num cotidiano, como se não houvesse outra escolha ao casal que está se separando. A abertura com “Chase It Down”, lindamente adornada com dedilhados de violões e arranjo de cordas elegantíssimo, dá o tom do que virá adiante. A impressão de que estamos diante de um álbum que surge como uma variação do rock inglês noventista se dissipa logo na terceira faixa, a magistral “Remember We Were Lovers”, que evoca as incursões do country-soul do fim dos anos 1960. Dentro deste binômio de gêneros aparentemente tão dísparas, mas que se comunicaram muito bem quando unidos, “You Can Trust Me Now” recebe tinturas mais country e versos como “You turned into someone I didn’t know.”. A faixa seguinte, “Living a Lie,” na qual há o questionamento definitivo, feito por Beth: “You wonder why I don’t have sex with you anymore?/Well, without trust how can there be love?”. Mortal.

 

O disco não oferece um final feliz ou uma solução para o dilema sentimental que mostra. A magia está na narrativa, nos detalhes e na franqueza sobre o que está acontecendo. As canções são fortes o bastante para nos fazer acreditar que tudo é real entre este casal agonizante. Muito disso é tirado de experiências de vida (com detalhes muitas vezes estranhos, como não poderia ser?), Mas ambos confirmam que se trata de um relato fictício. Gillespie e Beth formam um par maravilhoso, já que ambos são cantores que trazem honestidade e emoção nua e crua para suas apresentações.

 

 

As palavras muitas vezes cortantes e a intensidade latente das músicas, também refletidas na pintura da capa, criam um cenário emocional. Aqueles que conhecem o trabalho de Gillespie com o Primal Scream provavelmente ficarão surpresos com sua abordagem contida, quase sussurrante aqui. Beth é menos conhecida, mas sua contribuição, especialmente em seus vocais discretos, mas potentes, é inestimável.

 

 

Quer este seja o início de uma parceria musical estendida ou apenas uma única, é um álbum poderoso. Quem viveu o ocaso de uma relação amorosa irá se reconhecer nessas canções, dando, assim, o carimbo de absoluta veracidade para o que elas narram e significam. Belo trabalho.

 

 

Ouça primeiro: “Chase It Down”, “Remember We Were Lovers”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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