O novo álbum de Amaro Freitas mostra um Brasil inacreditável

 

 

 

 

 

Amaro Freitas – Y’Y
43′, 9 faixas
(Psychic Hotline)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

É um clichê dizer que “existem vários Brasis”. É triste que, mesmo depois de tanto tempo, esta afirmação seja verdadeira, pelo menos no que diz respeito à produção artística. Se para um número assombrosamente alto de brasileiros, a cultura produzida aqui tem a chancela obrigatória da grande mídia hegemônica, num espectro que vai desde luciano huck e bbb a Anitta e Ana Castela, para um contingente tristemente pequeno existe um outro Brasil. Neste outro país, não há o lixo cultural e social produzido em larga escala pelas engrenagens industriais do agro-mídio-negócio. E nem há a mínima possibilidade de existência de representantes da sociedade que contemplem armas, violência, preconceito, religião opressora e tudo mais que parece se assenhorar do outro Brasil com tanta rapidez e volúpia. Neste Brasil que tem Amaro Freitas, pianista recifense, como um raro representante, há espaço para a delicadeza, a sutileza, o livre pensamento e a sensibilidade. Pelo menos essas são as impressões que a audição de seu novo álbum, “Y’Y” suscita.

 

E nem se trata de “misturar as estações” e inserir elementos, digamos, extra-musicais nesta análise. Porque “Y’Y” é um disco conceitual sobre a Amazônia, sua existência, seu sentido e significado para quem vive lá. Sendo assim, não dá pra falar minimamente do assunto se você não vê a região como um santuário natural que deva ser muito mais preservado, considerado e entendido do que jamais foi na história do país. E isso, esta simples noção, já coloca o álbum de Amaro no campo político-pessoal, como toda obra de arte tem que estar. Não é um feixe de músicas descoladas da realidade, pelo contrário. São obras que se alimentam e interpretam a realidade como deve ser, ainda que incluam beleza e sensibilidade neste ato. As nove peças que compõem “Y’Y” (que quer dizer “rio” no dialeto Sateré-Mawé) oferecem esta visão do rio e de seus mitos, realidades, habitantes e vivências. Em termos, digamos, ideológicos, lembra “Txai”, disco que Milton Nascimento lançou em 1990, e que a revista bizz, tão legalzona e cool, disse ser tão ruim que “se para salvar a floresta teremos que ouvir esse tipo de coisa, a mata que vá para o inferno”. Então, gente, é o que estamos falando. Vários Brasis, muitos desles, péssimos.

 

Amaro traz a comunhão humana não-branca que “Txai” evocava e que não conseguiu honrar completamente totalmente realizada. Se Milton trazia cantos indígenas em várias canções daquele disco, “Y’Y” é um colosso instrumental. Amaro é um dos pianistas mais talentosos de sua geração, capaz de modificar seu instrumento, adicionando instâncias percussivas em suas cordas e usando-o de forma original, enfatizando muito mais o ritmo do que a delicadeza no uso das teclas. Lembra Egberto Gismonti e Naná Vasconcellos em alguns momentos, mas não é uma comparação totalmente precisa, justo porque ele sabe que precisa de todos os recursos para interpretar as imagens e sentimentos que deseja evocar. O resultado é avassalador.

 

Um bom exemplo deste binômio entre delicadeza e ritmo é a faixa “Dança dos Martelos”, que tem, nitidamente, duas metades. A primeira traz as visões e interpretações belas e verdes da mata, sua vida, seus modos e detalhes. A segunda é o outro lado, a força, as erupções da natureza, a contundência de chuvas, raios, inundações. Em “Sonho Ancestral”, em meio ao belo turbilhão de imagens, destaca-se, lá pelos dois minutos de duração, uma citação melancólica de “Asa Branca”, que soa como uma lembrança ao longe, um flash de passado no presente caótico e duro. O efeito é tão belo que emociona imediatamente o ouvinte, levando-o para o ponto de vista personalíssimo de Amaro. “Mar das Cirandeiras” é outra beleza indescritível, que valoriza a abordagem mais jazzística do piano, com repetições de harmonias e notas, variando sua interpretação com a ajuda de guitarra, teclados e corais, num efeito lindo. Todas as peças que compõem “Y’Y” são líricas, cheias de significado e compõem, juntas, um dos mais belos discos recentes feito por um brasileiro.

 

Com críticas elogiosas e respeitadas em veículos gringos como Downbeat, The Guardian e New York Times, não seria exagero dizer que Amaro Freitas é o músico brasileiro do momento. Ou melhor, o músico de um desses Brasis, talvez o mais impossível deles no momento. Enquanto isso, no Brasil mais perto de você, olhe bem e veja quem é o mais importante. “Y’Y” é demais, demais para a maioria dos Brasis.

 

 

Ouça primeiro: o disco todo.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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