Adriana Calcanhotto segue andando pelo mundo
Adriana Calcanhotto – Errante
38′, 11 faixas
(BMG)
A carreira de Adriana Calcanhotto, mesmo em suas diferentes fases, sempre se equilibrou entre tradição e modernidade. Surgida em 1990, no mesmo momento em que Marisa Monte, ela apontava para o futuro a partir de uma valorização da herança mpbística de então. Seu primeiro disco, “Enguiço”, já misturava versão de sucesso de Carmem Miranda com hit de Roberto Carlos mas acabou tendo em uma composição inédita – “Naquela Estação”, de Caetano Veloso – seu maior hit. Ela aprofundaria esta receita nos álbuns seguintes, especialmente “Esquadros” (1992) e “A Fábrica do Poema” (1994) e cravaria muitos sucessos ao longo dos anos 1990. Aos poucos, nos anos 2000, Adriana viu sua obra aprofundar-se mais em ritmos e poesia que não transitavam mais no âmbito popular, pelo menos, não como antes, e tornou-se uma figura menos exposta. Gravou álbuns ao vivo, encarnou um alter-ego infantil (com o qual fez muito sucesso) e, de 2019 para cá, ingressou num novo momento de sua trajetória, em que vem fazendo pesquisas com uma gama maior de ritmos e abordagens sonoras. “Errante”, seu décimo-terceiro álbum, é a mais nova versão de sua música.
Adriana compôs todas as faixas do álbum e recrutou uma banda enxuta e talentosíssima para acompanhá-la: Alberto Continentino (baixo e piano), Davi Moraes (guitarra e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão), além dela mesma ao violão. Ocasionalmente, Marlon Sette e Continentino dão conta dos metais. A ideia presente em “Errante” é fazer uma reflexão sobre escolher viver em trânsito. Adriana recentemente descobriu sua ascendência judia e declara ter se dado conta de sua própria “errância” no mundo como uma característica herdada do passado. Lembra um pouco o conceito do álbum “Frontera”, que Jorge Drexler lançou na virada do século, no qual também reflete sobre identidades, espaços e trânsitos.
A música que Calcanhotto cria e oferece em “Errante” é bela e elegante. Tem detalhes de produção que soam muito bem e, uma vez ouvidos em headphones, crescem em detalhe e brilho instrumental. Suas letras variam de contos e histórias, passando por vivências, a maioria em primeira pessoa, sempre com a postura reflexiva em primeiro plano. São diálogos tristes travados entre essas identidades em trânsito, muitas vezes sendo acomodados em arranjos que priorizam a tradição musical brasileira, sobretudo as variantes do samba. Esse é o caso, por exemplo, de “Reticências”, que narra um fim de relacionamento sob o ponto de vista da pessoa que ainda ama a que foi embora e não sabe o que fazer com isso. “Tudo seu, tudo seu, ainda”, diz Adriana em meio a um arranjo que vai crescendo em detalhe e emoldura a bela melodia da canção.
Em “Horário de Verão”, ela novamente fala de relacionamento amoroso e se mostra levemente perplexa diante da impossibilidade em vivê-lo. E, ao mesmo tempo, não entende como a pretensão humana pode querer mudar o próprio tempo, aludindo ao título da canção. A melodia é belíssima, o arranjo delicado e sutil. “Nômade” é mais moderna e arrojada, usando percussão diferenciada e metais para adentrar a questão do próprio ato de “errar” pelo mundo e, a partir disso, não ter lugar nenhum e todos ao mesmo tempo. “É onde te recebo, é o que te entrego, sou tudo o que carrego amanhecendo” ela diz para tentar emoldurar o paradoxo de lugares e pousos. E em “Era Isso o Amor?”, a cantora inverte os lados do amor, sendo agora a pessoa que partiu e, assim como o título, desmerece do sentimento e do que ele poderia ser – ou ter sido.
“Errante” é um álbum elegante e preciso no que procura mostrar, apresenta várias soluções sonoras interessantes e dá sequência a uma carreira vitoriosa. Tem algumas ótimas canções e deve funcionar bem ao vivo.
Ouça primeiro: “Era Isso o Amor?”, “Reticências”, “Horário de Verão” e “Nômade”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.