“Boca de Cachorro Louco”: Todas nós, presentes!
Kah Dantas, autora cearense radicada em São Paulo, exorcizou a mágoa e o medo deixados por um relacionamento abusivo nas 136 páginas e 80 capítulos curtos do seu livro Boca de Cachorro Louco, editado pelo selo Aliás Editora em 2018.
Da paquera inicial aos inúmeros fins pelas mais bobas razões os ingredientes da receita para a dor são colocados à nossa leitura e coração:
“Um dia depois da resposta afirmativa e de duas ou três geladas estaríamos aos beijos aos pés de uma árvore, em frente a um bar frequentado por universitários, cheios de adolescência nas maneiras”
“Começou com essa bobagem: dois segundos estúpidos hackeados de uma rede social minha depois de ele ter saído para trabalhar”
Após o choque das páginas de abertura, as sensações que livros escritos com a alma e coragem nos causam. Do “quem nunca “para o “eu já “a narrativa inquieta porque é real e dói.
“Hoje eu sonhei, ora a palavra não é boa, porque tive um pesadelo, você me traindo com essa menina que se achegou à sua família, foi terrível, você admitia tudo e era tão doloroso, até que seu rostinho virava outro, ou de uma pessoa que eu não conhecia, não porque eu te bati e esmurrei até cansar, incrédula”
Quisera eu ter conversado com todas as pessoas, mulheres, homens que leram Boca de Cachorro Louco para saber quais delas reviveram, desejaram que como tantas mulheres Kah não tivesse conhecido a soma de todos os abusos travestidos de amor.
“… ele me odiar e me deu um soco na boca do estômago, eu dei uns passinhos para trás com dor e horrorizada e então soube que nada mais seria necessário para que eu soubesse que era o fim “
Kah escancara o caminho até o término e a culpa, o julgamento, a dúvida da própria sanidade. Se tantas vezes a violência em casa tem um fim, ela continua pelas mãos e bocas da sociedade, no “deveria ter denunciado ““mulheres, não caiam na conversa de qualquer um”
“Ainda que “louca”, ainda que “descontrolada”, ainda que “ciumenta” ou ainda que fosse como eu, uma shitty mouth não há nada aí que nos valha duas mãos na garganta. Mas e você?”
Não lembro como conheci Boca de Cachorro Louco, mas sei quem ele atingiu: a Débora adolescente que só deixou de ter medo do homem que traiu minha confiança e minha integridade física quando entendi que ninguém pode me machucar.
Kah e eu tivemos tempo, mas quantas não tiveram?
No país em que a violência doméstica disparou em mais de 50% durante a pandemia e é um dos que mais matam mulheres no mundo, o livro da Kah é mais que necessário.
Um exorcismo poético, como ela define, que a ajudou a perdoar seu agressor, seguir sem temê-lo e que coloca a violência em seu devido lugar: fora de uma existência digna, do carinho, do amor como ele tem que ser e é.
Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.
Débora, quando as mulheres botarem a boca no trombone, alguns desses canalhas, talvez pela vergonha do mal que causam, melhorem. Nosso silêncio os favorece.