Becos da Memória, Becos do Brasil

 

 

 

“Becos da Memória”, de Conceição Evaristo foi finalizado nos anos 80 e publicado pela primeira vez somente em 2006, um tempo longo o suficiente para revelar as dificuldades enfrentadas pelas autoras e autores não pertencentes ao centros produtores dos cânones literários tradicionais ( ou seja, o homem branco) e que dão protagonismo aos rotulados como inferiores  em uma sociedade que tem muito a aprender e aceitar sobre a diferença de classes e o racismo.

 

“Homens, mulheres, crianças que amontoavam dentro de mim como eram amontoados os barracos da minha favela”

 

No prefácio da bem cuidada terceira edição, da Pallas Editora, Conceição diz que nada que está narrado em Becos é verdade ou mentira e que nele ela buscou a ficção como se estivesse escrevendo a realidade vivida.

 

A verdade que salta ao olhar de Maria- Nova, garota vivendo em uma favela de Belo Horizonte que enfrenta o duro processo do desfavelamento. Ela não é a única narradora de um cotidiano opressor, habitado pelas pessoas mais afetadas pelo nosso interminável apartheid social. Sendo Becos uma narrativa fragmentada e não linear de histórias que compõe com sensibilidade uma crônica do Brasil que desampara, Conceição inverte as vozes entre primeira e terceira pessoas:

 

“Hoje a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado”

 

“A menina crescia. Crescia violentamente por dentro. Era magra e esguia. Seus ossinhos do ombro ameaçavam furar o vestidinho tão gasto. Maria- Nova estava sendo forjada a ferro e a fogo. A vida não brincava com ela nem ela brincava com a vida “

 

A (re) construção dos becos e barracos, das fossas e festivais de bola, dos botecos e sambas e acima de tudo dos sofrimentos não estereotipa as acossadas e acossados pela pobreza e pela estrutura nociva que construiu o país onde nasceram. Se a comida na mesa não nos falta por que nos deixamos contaminar pelo desprezo a quem não conhece os direitos mais básicos?

 

“Adiou um pouco o seu encontro com a miséria. No barraco de Ditinha, moravam com ela, seus três filhos, sua irmã e o pai paralítico. Dois cômodos, a cozinha e o quarto-sala onde dormiam todos. Lá fora ficava a privada, a fossa. Seus meninos tinham treze, dez e oito anos. Estavam na escola havia séculos e não saíam do primeiro ano “

 

Também no prefácio Conceição diz que a con(fusão) entre ela e Maria Nova não a constrange. Criadora do lindo termo “escrevivência”, ela sabe que quando percorremos uma literatura permeada por memórias corremos o risco de misturar a identidade da personagem narradora com a da escritora.

 

“Todas as memórias devem ser celebradas. Até as doloridas.”

 

Quando menina Conceição viveu na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, que também passou pelo desfavelamento. Há um vídeo no canal do Itaú Cultura, de onde tirei a citação acima, em que ela visita o lugar onde ficava a favela. Nele Conceição diz que em todas as suas visitas tem a sensação de que a cidade a traiu, na medida em que ela não reconhece onde viveu e entende a impotência da população, que não pode fazer nada para que seu destino fosse diferente. O lugar que foram obrigados a deixar ficou tempos inutilizado.

 

Um quadro do retrato enorme da desigualdade brasileira.

 

Eu já havia assistido esse depoimento antes de ler Becos da Memória e se na primeira vez ele me foi impacto agora ele se fixou como certeza de que não existe somente ler Conceição Evaristo.

 

Existe viver a sua literatura, quer seja pelas narrativas -lembranças, quer seja pelo respeito à realidade e a dor que não conhecemos, que é a dos homenageados por ela nesse livro tão lindo e ao mesmo tempo tão triste.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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