Bauhaus: Dançando em salas escuras

 

 

 

 

Há máscaras que servem para esconder. Mas a máscara que intitula o segundo álbum da Bauhaus serve para mostrar. O performático quarteto de Northampton (Peter Murphy, Daniel Ash, David J e Kevin Haskins) esbanjava então criatividade. Após um primeiro álbum em 1980, vários singles/EPs e muitos shows, a banda sobe de escalão ao assinar com a Beggars Banquet, selo em que se abrigava o anterior, 4AD.

 

Se tomamos as datas de suas primeiras apresentações públicas, das 10 faixas de Mask, oito pertencem ao ano de 1981. As gravações se distribuíram por diferentes sessões ao longo do ano, em dois estúdios londrinos. A maioria delas ocorreu no Playground, estúdio de Mike Hedges, que no ano anterior produzira Seventeen Seconds, da The Cure. Também contribuíram Kenny Jones, que trabalharia com The Smiths, e John Etchells, com um currículo menos vinculado ao pós-punk.

 

Mas esses três nomes são creditados como engenheiros de som. A produção ficou novamente nas mãos da banda, que cuidou de tudo. Na capa figura um desenho de Ash. Já a assinatura na composição de letras e sonoridades é novamente coletiva. Não há músicos convidados. A Bauhaus aparecia coesa e assim entendemos porque a saliência que Murphy ganharia algum tempo depois seria um dos motivos para o quarteto se desmanchar em 1983.

 

Mask tem uma produção mais cuidada se comparado com o álbum de estreia. Algumas músicas ganham o acompanhamento de teclados. A sonoridade é mais definida, os efeitos mais sofisticados. Há um distanciamento em relação a uma das raízes da banda, o glam rock. Algumas faixas acenam para o pop. Entretanto, no seu conjunto, Mask não é um álbum facilmente acessível. E a intensidade mantêm-se alta. Nele, a Bauhaus dá continuidade a uma criação musical notável, em muitos aspectos singular. Algo que o rótulo “gótico” simplesmente não consegue conter.

 

Uma maneira de comentar as faixas de Mask é encontrando similaridades entre suas músicas. Assim, algumas duplas se formam. Comecemos com “Kick in the Eye”, música destacada não em um, mas dois singles, divulgados antes e depois do álbum. Com a letra referindo-se a uma iluminação budista, mostra uma linha de baixo altamente funky, muito bem acompanhada pela bateria. Por isso, podemos pareá-la com “Dancing”, mais rápida e agressiva, e também mais disco. Enquanto Murphy anuncia estar dançando sobre brasas (entre outras coisas), Ash oscila maravilhosamente entre o sax e a guitarra.

 

“Of Lilies and Remains” e “In Fear of Fear” escancaram as influências reggae da Bauhaus, que já estavam nas bases de sua primeira gravação, “Bela Lugosi’s Dead”. “In Fear…” (que ganhou uma versão dub no segundo single de “Kick in the Eye”) é praticamente um ska, alucinado por uma nova aparição do sax de Ash. A letra é uma crítica do medo (coisa inesperada para uma banda gótica…). “Of Lilies…” mostra Murphy narrando uma história que não deixa de ser engraçada, um morto em uma fuga que se depara com um muro que precisa escalar para recuperar a vida. A guitarra de Ash é sutil como em um reggae, aproveitando o groove de baixo e bateria dos irmãos David J e Haskins.

 

Em contraste com tudo isso, mostrando bem a diversidade do álbum, estão “Hollow Hills” e “Mask”. Ambas têm uma sonoridade densa, daquele tipo que não nos atrai se estamos bem, que não convém escutar se estamos mal… Estão bem colocadas no final de cada um dos lados do vinil. “Hollow Hills”, com sua letra inspirada em um conto de Arthur Machen, autor do gênero terror e fantasia, arrasta-se pesarosa. “Mask” impressiona por seus efeitos; os espasmos de Murphy são arrepiantes. Em sua metade, inesperadamente, introduz-se um espinhoso dedilhado de cordas, alterando o clima claustrofóbico que predomina até ali. A mudança acompanha a letra, que se refere a um “homem das sombras” que passa por uma transformação.

 

As demais quatro faixas não se deixam facilmente se associar. Em “Muscle in Plastic”, cuja letra divaga sobre movimentos corporais (citando o bailarino Nyjinsky, já lembrado em “Dancing”), brilha a bateria faiscante de Haskins, e a monotonia é quebrada por um teclado delirante. “The Man with X-Ray Eyes” tem uma levada tribal, lembrando algumas criações da dupla Hook-Morris na Joy Division; a letra presta homenagem ao título do filme de Roger Corman, diretor que verteu para a tela algumas das obras de Edgar Allan Poe.

 

“The Passion of Lovers” é a outra música de Mask que mereceu um single. Em sua capa, duas criaturas parecem estar se devorando. A letra, no entanto, não fala nitidamente de uma relação. O tema é uma mulher para quem a paixão dos amantes está relacionada com a morte. É o bastante para tê-la transformado em um clássico do gótico. Sonoramente, combina uma levada de bateria inusitada a uma linha de baixo melódica complementada por um violão meio espanholado. Guitarras apenas incidentais. Teclados ajudam a dar intensidade ao refrão.

 

Se “The Passion…” é diferente de tudo que a Bauhaus já fizera, “Hair of the Dog”, faixa de abertura de Mask, é a música que mais remete ao minimalismo e à brutalidade que permeiam muito do que escutamos em In the Flat Field. Os ruídos de seu início ilustram bem a primeira linha do poema que está transcrito no interior da capa do álbum: “Isso é para quando o rádio está quebrado e crepita como orquídeas de urânio”. Entram o baixo e a bateria, em um jogo obsessivo que imita a letra, com versos que falam de coisas como “o homem cujos olhos sofrem com obscenidades e continua olhando”. A guitarra de Ash é hipnotizante, oscilando entre notas altas e estridentes e acordes pesados e encorpados.

 

Mask saiu na Inglaterra em outubro de 1981, com mais sucesso de crítica do que de público. O Brasil só teve uma edição local em 1987, graças ao selo Stiletto e à distribuição do Estúdio Eldorado. A Stiletto foi responsável pelo lançamento de outras bandas do pós-punk em vinil no Brasil, como Joy Division, Nick Cave, The Durutti Column, The Fall e Cocteau Twins.

 

Vale muito escutar as versões ao vivo das músicas de Mask. Em 2009, como parte de uma edição caprichada do álbum, foi lançado o registro de uma apresentação de novembro de 1991. “The Man with X-Ray Eyes” é executada de maneira bem diferente nesse show. Essa versão já havia sido incluída em outra compilação interessante. Press The Eject And Give Me The Tape, lançada em 1982, traz ainda gravações de performances em outubro de 1981 e fevereiro de 1982. A edição em CD acrescenta faixas de um show em Paris em dezembro de 1981 e uma cover de “I’m Waiting for the Man”, da Velvet Underground, com participação de Nico.

 

Existe também um material em vídeo bem interessante sobre essa fase que junta o que a Bauhaus fez de melhor, com seus dois primeiros álbuns e vários singles. O show de fevereiro de 1982, ocorrido no Old Vic Theatre, Londres, foi filmado e o resultado foi aproveitado em duas produções: Shadow of Light (1984), uma compilação de clipes, e Archive (1984), um registro parcial daquele show entrecortado por dramatizações.

 

Esse material oferece a oportunidade para conferir a performance da banda, marcada pela teatralidade, a começar pelo cenário, com as duas tradicionais máscaras que representam esse gênero de arte. A iluminação recebia uma atenção especial: não há sombra sem luz, afinal. E as luzes eram todas brancas, pois, como o quarteto frisou certa vez, deixemos as luzes coloridas para árvores de natal.

 

Entre os videoclipes de Shadow of Light, a única música do repertório de Mask é exatamente a canção título. Christopher Collins, que também autora Archive, produziu um filme noturno, com uma concepção visual nos conformes do que se espera de algo “gótico”. Murphy é o tal “homem das sombras”, foco de uma espécie de ritual macabro. Como na letra da música, ele parece renascer, literalmente sacudindo a poeira. Fotos do filme ilustram a capa interna do álbum e contribuem para a estética da banda. O mesmo se pode dizer do desenho de Ash, em que figuram quatro criaturas, nem todas humanas, sob um sol que não parece ter qualquer importância além de encarnar a única cor da composição.

 

Em suma, Mask é outra prova do momento inspirado que vivia o pós-punk britânico no início dos anos 80. Parte desse cenário, a Bauhaus produz composições mais ou menos fascinantes. Músicas que, ao mesmo tempo, têm os indícios de um risco que acompanha aquela vertente do pós-punk, o risco da monotonia. Pois não são músicas que evoluem. Na maior parte das vezes, elas giram em torno de um tema e nisso se prendem. Pensemos em The Fall, banda cuja genialidade anda lado a lado com a chatice.

 

Mas em Mask, os tentos estão bem além dos riscos. Com esse álbum, podemos perceber as influências de musicalidades negras sobre o rock embranquecido. Podemos dançar com raiva de verdade ou para atingir alguma iluminação. Podemos mergulhar na escuridão, correndo o risco de não renascer. Podemos pensar com letras repletas de morbidez, mas também de ironias e encenações, que, para isso e para além disso, nos oferecem referências que são pistas para a literatura, o teatro e o cinema. Aliás, o poema transcrito na capa interna do álbum é creditado a um tal de Brilburn Logue, um dos pseudônimos de Alan Moore, futuro autor de V for Vendetta com seus anti-heróis (poderosamente) mascarados.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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