Batalha de memória em Niterói

 

 

Um dos mais valiosos ensinamentos que obtive em minha vida acadêmica foi que a História acontece todos os dias. Aprendi isso na graduação da História-UFF, quando algum professor falou sobre a Escola dos Annales, composta por historiadores franceses que promoveram revoluções no estudo da disciplina e da ciência. Além dessa noção de que o passar dos dias e dos fatos constitui a essência das fontes de pesquisa histórica, o pessoal dos Annales (um periódico francês, cuja primeira edição data de 1929) entendia que o estudo da História precisava ser capaz de dar conta de diversas manifestações importantes para que seja construída – ou reconstituída – a visão de um grupo de pessoas, em determinado tempo e espaço.

 

Por exemplo: se não houvesse tal visão revolucionária, não teríamos as batalhas de memória travadas após a Segunda Guerra Mundial, que permitiram estudar e entender a magnitude da violência perpetrada pelos nazistas e seus colaboradores – muitos deles, franceses. E não seria possível abastecer os tribunais que os julgaram e condenaram, bem como também não teríamos a construção da própria narrativa das perseguições e o nível em que elas se deram. A memória é, portanto, de uma forma bem enxuta, o combustível da História. É ela que vai nos fornecer as impressões mais frescas sobre o que pensam as pessoas de um lugar e, a partir disso, permitir que seja traçada a linha de eventos e fatos com muito mais precisão do que as fontes formais e oficiais dos documentos escritos – até então, as únicas aceitas pela ciência histórica do século 19.

 

O que isso quer dizer sobre Niterói? Bem, tal noção de que a memória é o combustível da História permanece vigente e estamos vendo uma iniciativa muito representativa destas “batalhas” travadas na sociedade: a mudança de nome da Rua Coronel Moreira César para Ator Paulo Gustavo, no bairro de Icaraí, Zona Sul de Niterói. De um lado, a administração progressista de Axel Grael, tomando a iniciativa de promover uma consulta pública para que a população escolha se deseja a mudança. De outro, a população majoritariamente conservadora do bairro se opondo. O resultado da consulta foi acachapante: mais de 90% dos votantes desejavam a mudança e, após enviar mensagem para a Câmara dos Vereadores, o novo nome da rua foi votado e aceito por 17 x 3. Ou seja, sai Moreira César, um militar paulista que comandou campanhas do Exército Brasileiro em Canudos, sendo responsável por várias mortes – e que foi morto lá mesmo; e entra o ator e humorista niteroiense, que moldou sua trajetória sempre mencionando sua origem e mostrando a cidade para o Brasil através dos três filmes “Minha Mãe é Uma Peça”, baseados no espetáculo teatral de mesmo nome.

 

Por que tal mudança suscitou reações tão negativas entre os moradores de Icaraí?

 

Bem, como dissemos, grande parte dos habitantes do bairro é composta por conservadores que, como o nome já diz, são resistentes/críticos a posturas mais libertárias, como, por exemplo, a adotada por indivíduos pertencentes a grupos LGBTQ+. Paulo Gustavo era uma dessas pessoas, tinha um marido e dois filhos adotados. Além disso, o humorista tinha postura política à esquerda – evidenciada em declarações e fotos com a Presidente Dilma Rousseff – e interpretava uma mulher em seu papel mais conhecido, no caso, Dona Hermínia, inspirada em sua mãe. Não é possível confirmar que a resistência à mudança do nome da rua tenha ocorrido por conta dessas condutas de Paulo Gustavo, mas os argumentos oferecidos para manter o nome de Moreira César giravam em torno da ideia de que a Prefeitura estava “fazendo politicagem” ao propor a mudança. Que a homenagem “mais adequada” era num cinema ou centro cultural e que alterar o nome da rua traria muita dor de cabeça aos comerciantes do local, que precisariam mudar seus alvarás e contratos sociais.

 

Tal atitude revela que a homenagem a Paulo Gustavo seria justa, DESDE QUE, não perturbasse a visão deste grupo de pessoas. Ou seja: que ela não estivesse evidente o tempo todo, como em um nome de rua modificado, por exemplo. Que ela se restringisse a um âmbito específico – no caso, o cultural – para que APENAS LÁ, a homenagem se confirmasse. Isso quer dizer que, se a pessoa não frequenta o espaço específico, não percebe que seu nome foi alterado. Quantas pessoas iriam ao Cinema Paulo Gustavo? Certamente bem menos do que as que passarão na Rua Ator Paulo Gustavo.

 

O mais simbólico é a saída de um militar e a entrada de um ator para dar o nome ao espaço urbano. Em tempos de bolsonarismo, várias pessoas se manifestaram indignadas com a mudança, com a saída de “um patriota” para colocar “um ator” no lugar. E completavam: faz um busto na Praia de Icaraí ou coloca o nome no cinema e pronto. Como dissemos, tais atitudes, ainda que legítimas, restringiriam o escopo da homenagem.

 

A Prefeitura de Niterói, na figura do prefeito Axel Grael, marcou um gol de placa. Ciente da importância que os filmes de Paulo Gustavo têm para o turismo da cidade e da relevância de seu trabalho na difusão da imagem da cidade para o país, conseguiu recuperar o lugar de Niterói nas questões culturais brasileiras e terá o primeiro espaço urbano a homenagear o ator, precocemente falecido por covid-19 após longa batalha internado. Paulo era um frequentador da antiga Moreira César, era visto e encontrado em lanchonetes do lugar, sempre de bom humor. Após sua morte, o Padre Júlio Lancelotti revelou que ele contribuíra com valores significativos para sua obra assistencial e sua ajuda na crise sanitária em Manaus também foi confirmada. Paulo enviou vários cilindros de oxigênio para a capital amazonense.

 

Niterói está, neste momento, com esta iniciativa, produzindo memória. E moldando sua história. Em seu bairro mais importante, com maior poder aquisitivo e que tem o metro quadrado mais caro do município, sua rua mais badalada, cheia de lojas chiques e que tem a frequência altíssima durante o dia, exibirá, orgulhosa, o nome de alguém que contribuiu efetivamente para que a cidade ultrapassasse seus limites e chegasse a lugares inéditos. Oa reacionários, como o nome já diz, reagem a isso e os políticos representativos das vertentes mais conservadoras, ligadas ao governo federal, prometem impedir a realização da mudança de nome.

 

Eu pergunto: que tipo de gente desejaria impedir algo como isso? A resposta revela tudo o que você precisa saber.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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