O blues no rock (alternativo) dos anos 90
A Todo Volume (Davis Guggenheim, 2008) é um documentário protagonizado por Jimmy Page, The Edge e Jack White. Seu tema é a guitarra, na ótica de cada uma dessas três feras. Eles também comentam sobre suas trajetórias nas bandas que integram ou integraram. Os momentos em que os três guitarristas estão juntos são verdadeiros registros históricos.
Um enfoque possível sobre esses caras é sua relação com o blues. No caso de Jimmy Page, essa relação é bem conhecida, pois a Led Zeppelin foi uma de tantas bandas britânicas que mergulhou fundo (e bebeu muito) no gênero americano. Mais próximo das fontes desse gênero, Jack White, antes, durante e depois da White Stripes, pode ser apresentado, no seu jeito de tocar e cantar, como um blueseiro em versão indie. No filme, é ele que mais destaca a influência do gênero sobre seu trabalho.
No caso do guitarrista do U2, a relação com o blues é mais localizada: concentra-se na época de The Joshua Tree e de Rattle and Hum, quando a banda aprofundou sua fase americana e foi atrás das raízes do rock. O consagrado B.B. King foi parceiro de gravações e de turnê.
Façamos as contas: temos um dinossauro cujas pegadas mais profundas foram deixadas entre o final do anos 60 e a primeira metade dos anos 70; a superbanda irlandesa em sua encarnação do final dos anos 80; o feiticeiro indie cujo LP de estreia, com a White Stripes, é de 1999. Eis a questão: por onde andava o blues no rock da primeira metade dos anos 90?
Antes de arriscar uma resposta para essa pergunta, vale notar que a incursão do U2 no blues parece ser uma exceção no universo originado pelo pós-punk. Outros exemplos para cobrir a década de 80 seriam os projetos do australiano Nick Cave e a banda canadense Cowboy Junkies. O quadro não parecia ser muito promissor…
Mas não desanimemos. Contudo, primeiro é importante saber de onde vem o que estamos procurando.
Playin’ the blues
Se não é difícil reconhecer um blues, defini-lo não é tão fácil. Uma certeza podemos ter: trata- se de música negra. Suas origens remontam ao final do século XIX e têm a ver com as condições históricas da população negra no sul dos Estados Unidos. O plural na palavra origem é um imperativo. O blues é inseparável de suas transformações. Ele mesmo transformação de musicalidades africanas, estará constantemente em movimento. Nessas origens, há certamente as canções que marcavam o ritmo das ferramentas e dos corpos nas fazendas, assim como há o padrão de chamado-e-resposta que caracterizava os cultos em igrejas cristãs negras.
Nessas origens, há o encontro de W.C. Handy com outro negro que tocava deslizando uma faca no braço do violão. Handy dedicou-se a produzir registros que estão entre os pioneiros do gênero. Mas neles se introduzem outros instrumentos, pequenas orquestras que tornam o blues uma espécie de black pop music. Nova York o conhece nessa configuração, celebrizando cantoras como Bessie Smith e Clara Smith nos anos 20.
Nessas origens, cabe ainda o encontro de Alan Lomax com Muddy Waters. Aí já estamos nos anos 40, mas Lomax reconhece em Muddy Waters um herdeiro e continuador do country blues do Delta do Mississipi – uma tradição que inclui Charley Patton, Willie Brown, Skip James, Robert Johnson, Howlin’ Wolf, Son House, entre outros violeiros-cantores. Para Lomax, um pesquisador da Biblioteca do Congresso Americano, o blues era basicamente uma música étnica, só compreensível no contexto das plantações do sul dos Estados Unidos. Ora, justamente Muddy Waters torna-se um dos pioneiros da eletrificação do blues, trocando o violão pela guitarra. Isso ocorre em Chicago, onde ele chega em 1943 após tomar um trem com vagões segregados. Daí para o rock’n’roll será um caminho curto, embora a cor do vagão tenha mudado…
A viagem de Muddy Waters carrega ainda outro significado: o movimento, vivido ora como
exílio, ora como libertação. Muitas letras de blues antigos tematizam o movimento, inclusive em encruzilhadas. Em seus fluxos e mutações, o blues, além de estar nas origens do rock, continuou mantendo com ele uma fértil relação. Pode ser no jeito de cantar e compor as letras sobre temas variados, nos riffs e progressões de acordes na guitarra, na atmosfera e no andamento produzido por baixo e bateria – o blues manteve-se como uma espécie de estação de força para o rock, provocando-o com o mesmo movimento que o fez surgir. Sem falar no repertório de canções que se abria para novas leituras.
Mesmo no rock alternativo dos anos 90?
Aponto cinco artistas/bandas que no começo dos anos 90 têm no blues uma referência fundamental. Esses cinco exemplos são bem diferentes entre si, mostrando que os resultados do diálogo são tão diversos quanto os caminhos do blues.
The Jon Spencer Blues Explosion já traz no nome o que pretendo destacar. Divulgando seus primeiros registros em 1992, o trio nova-iorquino vinha cheio de marra, groove e ruído. Now I Got Worry, de 1996, e Acme, de 1998 são o ponto alto de sua trajetória.
The Black Crowes, banda da Geórgia, EUA, embora formada em 1984, teve seu LP de estreia apenas em 1990. Em seguida, The Southern Harmony and Musical Companion, de 1992, traz o quinteto em seu primor. O som é retrô (a ponto de serem acusados de imitar Rolling Stones ou Faces), mas não deixa de dialogar com o que lhe era então contemporâneo. E soa muito bem aos ouvidos.
1992 é também o ano da estreia do Morphine, trio formado em Massachusetts que trocou a guitarra por um saxofone. A configuração produzia uma sonoridade singular, mas com dívidas evidentes com o jazz e o blues. De sua discografia que atravessa a década, destacaria Cure for Pain, de 1993.
Beck constrói nos anos 90 seu trajeto com músicas que o revelam como uma verdadeira esponja para uma infinidade de influências. Entre elas está o blues, indefectível no riff de “Loser”, single de 1993 que celebrizou o andarilho. Em 1996, Beck lança um dos melhores álbuns da década, Odelay. E o blues continua entre os ingredientes do caldeirão.
Do outro lado do Atlântico, encontramos PJ Harvey. À frente de um power trio, empunhando sua guitarra, a tímida jovem grava dois petardos acintosos: Dry (1992) e Rid of Me (1993). A versão de “Wang Dang Doodle”, de Willie Dixon, parte do repertório de shows nessa época, escancarava o apreço da artista pelo blues.
Desconhecer essas bandas/artistas é perder a chance de acompanhar algumas das produções
mais interessantes dos anos 90. Os álbuns destacados formam uma lista a merecer comentários individualizados posteriormente, a começar por 2022, quando alguns completam seus 30 anos.
Quem acha – ou restringe suas lembranças a isso – que o universo alternativo do rock nos anos 90 ficou reduzido ao grunge e ao britpop, está mal informado. Havia várias coisas “correndo por fora”. Entre elas, bandas e artistas que cultivavam interações com o blues, acessado em muitas de suas versões.
No som de Seattle, aliás, também há sim influências do blues. Bem fortes em The Temple of Dog, projeto com filho único que pode ser descrito como um cruzamento de Soundgarden com Pearl Jam. Abertamente confessadas no apreço de Kurt Cobain por Leadbelly. Transmutadas para produzir a trilha sonora do inferno que é Dirt, segundo álbum da Alice in Chains, de 1992.
Blues em português
Em contraste com o panorama baseado nos Estados Unidos e Inglaterra, o rock no Brasil dos anos 80 tem uma história que não pode ser contada sem menção ao blues. Uma referência óbvia é a Barão Vermelho, que desde seus inícios prestou tributo ao gênero. Cazuza, na banda e em carreira solo, compôs vários blues – revisitados pelas possantes interpretações de Cássia Eller.
Uma parte do “rock gaúcho” dos anos 80 é fortemente marcado pelas sonoridades stoneanas, em especial aquelas com raízes blueseiras. Garotos da Rua, TNT e Cascavelletes podem ser apontadas como as principais bandas nessa vertente, abrindo espaço para artistas com uma identificação mais específica com o gênero.
Aliás, artistas e bandas de blues também fazem parte do cenário nacional nos anos 80. Vale lembrar de Celso Blues Boy, além de, mais para o final da década, André Christovam e Blues Etílicos. Quando o “rock brasileiro” começou a esgarçar suas referências, o blues foi uma das direções que despontaram.
É interessante que um dos álbuns mais fortes deste 2021 traga o blues em seu título. Estou me referindo a Delta Estácio Blues, da maravilhosa Juçara Marçal. A rigor, nenhuma das faixas é um blues, mas a palavra faz ressoar os temas das músicas e nos provoca a fazer paralelos entre as territorialidades negras em duas diásporas africanas. A faixa título imagina um encontro entre Robert Johnson e Ismael Silva, Bide e Baiaco, da “turma do Estácio”. “Crash” é uma das melhores faixas de 2021, em minha singela opinião.
O presente, tão sentido nesse lançamento de Juçara Marçal, me fez voltar novamente ao passado. Renato Russo foi também um compositor de blues. “Música Urbana 2”, faixa de Dois (1986), continua a causar arrepios a cada escuta. Em sua fase de “trovador solitário”, Renato fez também “Boomerang Blues”. A canção foi gravada pelo Barão Vermelho no primeiro álbum após a saída de Cazuza (Declare Guerra, 1986); um registro em voz e violão do próprio Renato, com inserções do produtor Nilo Romero, foi incluído em uma coletânea póstuma.
Citar o começo de “Boomerang Blues” é uma forma auspiciosa de terminar 2021. Precisamos escutá-lo com os mesmos ouvidos que percebiam a mensagem política de Chico Buarque em “Apesar de Você”. Pois então:
Tudo o que você faz
Um dia volta pra você
E se você fizer o mal
Com o mal mais tarde você vai ter de viver
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).