A trilogia das covers – com Juliana Hatfield

 

 

Pois é, o título desse texto é um, digamos, trocadilho, com a célebre “trilogia das cores”, nome dado às obras do diretor polonês Krzysztof Kieślowski, lançadas no início dos anos 1990: “A Liberdade é Azul”, “A Igualdade é Branca” e “A Fraternidade é Vermelha”, evocando as cores da bandeira francesa. Mas é só a sonoridade que importa aqui, os lançamentos de Juliana Hatfield nada têm a ver com esses filmes, pelo menos, não de forma perceptível. O que há nos três álbuns, lançados por ela entre 2018 e 2023 é um carinho de fã, algo pouco comum em tributos e empreitadas dessa natureza. Aliás, há uma boa diferença entre estes três trabalhos de Juliana e homenagens banalizadas e empasteladas em geral. O que ela faz é rever um monte de canções que parecem ser suas favoritas ao longo de muitos anos. Tanto que há uma quantidade considerável de “deep cuts” junto a sucessos mais ou menos óbvios. Além disso, as escolhas marcam bem aquelas bandas e artistas que costumávamos ouvir para “formar nosso gosto musical. ” ELO e Olivia, com força total nos anos 1970, chegando mesmo a “fazer um feat” na trilha sonora do longa “Xanadu”, enquanto The Police, talvez a banda mais criativa e surpreendente surgida no pós-punk britânico, com discografia mais precisa, elegante e consistente. Dá pra imaginar a pequena Juliana com posters dessa gente no quarto, andando de patins e decorando a letra de “Magic”.

 

Por isso mesmo, por conta desse jeitão de homenagem sincera, de karaokê pessoal, de “labour of love” que se torna possível apreciar várias camadas de sentidos nesses álbuns, além do fato de serem bem interessantes. Juliana é uma artista bem conhecida nos meios indies alternativos. Ela surgiu como integrante de um grupo chamado Blake Babies, na cena de Boston. Tinha como contemporâneos grupos como Lemonheads, Pixies e Throwing Muses, apenas para mencionar os mais conhecidos. Sua carreira iniciou realmente quando se tornou artista solo e lançou o álbum “Hey Babe”, em 1992 e, como produto de seu tempo, participou de séries, programas na MTV, capas da Rolling Stone e tudo mais. Sua colaboração com Evan Dando, dos Lemonheads, a levou para um público ainda maior, quando, a bordo do grande “It’s A Shame About Ray” (1992), que posicionou o grupo como uma força indie naquele início de década, Juliana surgiu duetando, tocando baixo e estrelando na fofíssima “Bit Part”, cançoneta de pouco mais de um minuto. A partir dali, ela se manteria como uma artista regular e confiável, lançando discos com certa frequência e, se não mudou o mundo, também não o deixou cair na mesmice total.

 

“Nunca deixei de amar Olivia Newton-John. Sua música trouxe muita alegria ao longo da minha vida. Eu a amei quando era criança e ainda a amo. Sua voz, sua energia positiva e suas melodias resistiram ao teste do tempo e elas me dão tanto prazer agora como sempre. Ouvi-la é uma fuga para um lugar lindo. Ela me inspirou muito intimamente e eu só queria retribuir; compartilhar algumas dessas músicas incríveis , reinterpretado, com amor, por mim”.

 

 

Esta declaração veio com o lançamento de “Juliana Hatfield Sings Olivia Newton-John”, em 2018. O álbum, gravado, tocado e produzido por Juliana, com a doação de um dólar a cada exemplar vendido, para a Olivia Newton-John Cancer Wellness & Research Centre (ONJ Centre). O resultado é como uma fita cassete de preferidas pessoais, naquele formato descrito acima, misturando canções obscuras e alguns sucessos mais manjados. Nessa última categoria estão, por exemplo, a trinca de ouro “A Little More Love”, “Magic” e “Physical”, além da inevitável “Xanadu”, todas em arranjos que buscam recriar a dinâmica dos originais, mas com uma nítida pegada lo-fi, que funciona, e consegue diferenciar sem descaracterizar, algo que, a meu ver, é fundamental nesse tipo de situação. Mas há o toque pessoal de Juliana, que aparece de formas distintas, como em “Dancin’ Round And Round”, um dos últimos sucessos de Olivia, originalmente uma cançoneta country, aqui rearranjada para um ambiente quase new wave. “Make A Move On Me” também ressurge aqui mais rockinha, mais marota, numa boa releitura.

 

 

A satisfação com o disco foi tanta que Juliana resolveu preparar um novo tributo pessoal, mesmo já tendo lançado um álbum de inéditas no início de 2019, “Weird” (que ganhou a primeira resenha postada neste site, em 3 de fevereiro daquele ano, dez dias antes de entrar no ar). A lógica de “diferenciar sem descaracterizar” foi mantida e deu norte a “Juliana Hatfield Sings The Police”, que já iniciava com uma versão lo-fi adorável para a clássica e vitalícia “Can’t Stand Losing You”, a primeira canção do antigo lado-B do primeiro álbum do grupo inglês, “Outlandos D’Amour”, de 1977. Com o repertório do Police em mãos, Juliana também mistura preferidas pessoais a hits massivos, com um número grande de canções não muito conhecidas do grande público. Pra uma “Every Breath You Take”, há “Canary In A Coal Mine”, “Next To You” e “Hole In My Life”. Pra uma “De Do Do Do De Da Da Da”, há uma “Hungry For You”, uma “Rehumanize Yourself” e uma “It’s Alright To You. Ou seja, ela parece se apropriar com mais sentido e despreocupação com reler favoritas dos fãs policeanos. E quando surge um cavalo de batalha como “Roxanne”, ele vem num arranjo escasso, com guitarras e bateria eletrônica no limite da demo tape, da gravação caseira. E funciona.

 

 

Sobre “Juliana Hatfield Sings ELO”, melhor deixar a própria Juliana falar a respeito.

“As músicas do ELO sempre tocavam no rádio quando eu era criança. Eles eram uma fonte confiável de prazer e fascínio (exceto “Fire On High”, que me assustou profundamente na época). Com este álbum de covers eu queria me aprofundar em alguns dos grandes sucessos dos anos 1970, mas também destacar alguns dos trabalhos posteriores (“Ordinary Dream” do álbum “Zoom” de 2001, “Secret Messages” e “‘From The End Of The World”, ambas dos anos 1980). Tematicamente, identifico-me com a solidão, a alienação e o espaço sideral nas músicas que escolhi. (Sempre me senti parte alienígena, não pertencendo totalmente a este mundo terrestre.) Sonoramente, as gravações da ELO são como um parque de diversões repleto de jogos musicais divertidos com camadas e mais camadas de partes variadas e meticulosas para seus ouvidos explorarem, como, por exemplo, as curiosidades de produção; pilhas enormes e lindas de quebra-cabeças de harmonia vocal inspiradores. Minha tarefa era tentar quebrar todas as coisas e reconstruí-las sutilmente até que parecessem minhas. No geral, fiquei bem próxima das estruturas dos originais enquanto descobria novas maneiras de expressar ou fazer referência aos arranjos de cordas únicos e amados da ELO. Teria sido difícil ou impossível para mim conseguir gravar uma orquestra, nem pensei que fizesse sentido tentar copiar essas partes como eram originalmente. Por que não tentar reimaginá-las dentro da minha zona de limitações? Em alguns casos transpus as partes de cordas para guitarras, ou teclados, e até cantei algumas delas (como em “Showdown” e “Bluebird Is Dead”). Gravar o álbum foi um processo meio complicado e demorado. Fiz todas as minhas faixas em casa, no meu quarto (bateria e baixo foram feitos por Chris Anzalone e Ed Valauskas, respectivamente [em seus próprios espaços de gravação]), e continuei me deparando com problemas de tecnologia que me frustrariam e me atrasariam. Mas, no fim, consegui fazer tudo. Um trabalho de amor”.

 

A acrescentar apenas que as escolhas feitas por ela são, de fato, surpreendentes e evitam o óbvio. É possível ouvir hits medianos como “Showdown” ou “Don’t Bring Me Down”, mas não temos, por exemplo, mais uma versão para “Mr.Blue Sky” ou “Livin’ Thing”. Essa trinca de álbuns é um belo exemplo de como uma artista já estabelecida pode homenagear e revisitar suas influências com personalidade, atendendo a uma demanda pessoal e, no meio do processo, servindo de veículo para que novas e novíssimas gerações tenham contato com essas belezuras setentistas e oitentistas. Essa trilogia de covers é altamente recomendada, tanto para fãs de Juliana, quanto de seus homenageados. Conheça.

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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