A motocicleta é a nova camisa da cbf
Alguém aí lembra de um desenho chamado “Devlin, o Motoqueiro”? Passava na Bandeirantes à tarde – se bem me lembro, eu devia ter uns sete, oito anos. Era a história de Ernie Devlin e seus dois irmãos, Todd e Sandy. Ernie era motociclista acrobático e ganhava a vida dando saltos sobre vários obstáculos no circo de Hank, seu amigo. Eu adorava o trailer que o Ernie tinha, as portas traseiras abriam e ele, no melhor estilo desenho impossível realizado, saía lá de dentro já uniformizado e com a moto zunindo. Esta foi a minha primeira experiência com motos, um desenho animado. Por mais que eu fosse criança e a produção da Hanna-Barbera, de 1974, fosse destinada para um público infantil, era possível ver algo diferente ali. Andar de moto era arriscado, exigia coragem e sangue frio. Pois bem.
Tempos mais tarde eu vi motos em filmes como “O Selvagem da Motocicleta” (o original, de 1953 e a refilmagem, de 1986), “Fugindo do Inferno” (com a sensacional sequência de Steve McQueen fugindo dos nazistas numa moto, na qual ele não usou dublê), “Easy Rider” (com Peter Fonda e Jack Nicholson) e até na capa do meu disco preferido dos anos 1980, gravado pela banda inglesa Prefab Sprout e dedicado, veja só, a Steve McQueen, que deu nome ao álbum na Inglaterra, mas não nos Estados Unidos, por questões judiciais (lá o disco se chamou “Two Wheels Good”). Em comum a mesma sensação: moto era coisa arriscada, mas que recompensava os usuários com liberdade, independência e coragem. Até o motociclista acrobata Evel Knievel – cuja fama nos Estados Unidos inspirou o próprio “Devlin, o Motoqueiro – era sinônimo de risco e triunfo. Até “Vital e Sua Moto”, querido sucesso dos Paralamas, era uma certeira mensagem de porralouquice motoqueira por parte de um ex-baterista.
Desde 1885, quando a motocicleta foi patenteada por Gottlieb Daimler, esta enfrentou preconceitos e estabeleceu-se como um símbolo de autonomia e risco, seja no uso, seja na analogia da máquina com o usuário. O motociclista era, guardadas as proporções, um cavaleiro moderno, um outsider, um solitário. Pois bem, esqueça tudo o que você leu até aqui. Assim como o rock’n’roll mais clássico – outro símbolo de astúcia, coragem e independência – a moto tornou-se um sinal quase inequívoco de conservadorismo e burrice acomodada. Basta ver a adesão de motociclistas aos dois eventos que o atual ocupante da presiência organizou em Rio e São Paulo, as “motociatas”. As imagens, por mais modificadas e adulteradas que possam ser, mostram uma horda de motoqueiros acompanhando o ocupante da presidência num cortejo fúnebre em meio a quase 500 mil mortos por covid-19. Na pauta as mesmas coisas: sem máscara de proteção, sem isolamento, sem preocupação com o próximo, sem receio de passar uma imagem negativa para a população do país.
A moto é o símbolo da audácia pervertido. Vejam: é como se o ocupante e sua turma desafiassem as determinações da sociedade e, perdão pela palavra, cagassem para os riscos da covid-19. Até aí, a gente entende, ainda que jamais aceite, porque, afinal de contas, a moto é um símbolo. Esta gente, a maioria além dos 50 anos, barriga protuberante, opiniões e visões de mundo lamentáveis, total desinformação sobre tudo e todos e, em contrapartida, se achando dona da verdade, monta em suas motos e vai cortejar o ocupante, endossando sua postura e destilando o ódio por quem não é semelhante. Ou seja, como a maioria dessa gente se diz religiosa, vai em choque direto aos mandamentos, que falam sobre amar a todos. Dane-se os mandamentos, ou melhor, pervertam-se os mandamentos e todos os símbolos, com um Jesus Cristo motoqueiro e fã de Lynyrd Skynyrd e uma bandeira confederada na jaqueta de couro.
A quantidade de informações gerada pela humanidade é muito grande. Quem não tem conhecimento e estudo, certamente cairá nessa armadilha de sentidos e significados. Tal situação permite que seja possível conservadores, racistas, homofóbicos, machistas e preconceituosos em geral, formem um comboio para acompanhar um sujeito que exalta todas essas posturas e que segue não se importando com as mais de 2 mil mortes diárias por covid-19 no país. Seguimos firmes rumo aos 500 mil mortos. E a motocicleta, coitada, é a nova camisa da cbf.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.