Os trinta anos de “It’s A Shame About Ray”

 

 

No início dos anos 1990, eu estava devidamente convertido ao CD e pronto para iniciar minha coleção de discos. Só que eu não sabia disso, não era um objetivo, um plano. A vontade de adquirir álbuns que se comunicassem comigo já ia além de curtir as músicas das paradas de sucesso e, bem, seguia um foro íntimo, uma noção qualquer que ia além de curtir o som. Era um tempo de procura, de necessidade de identificação, de descobrir sonoridades que despertassem algo além do mero prazer auditivo. “It’s A Shame About Ray”, o quinto disco do grupo americano Lemonheads se beneficiou deste meu momento e entrou para a minha memória como um álbum que vai além da belezura musical, adquirindo sentidos e significados outros. E agora ele está completando trinta longos e inacreditáveis anos de existência. Este tempo – 1992 – era pré-jornalismo, pré-mundo e o disquinho do Lemonheads veio confirmar esta troca de pele que eu vivia, que passava por ir pra Uerj, conhecer amigos que tenho até hoje, iniciar minha busca pelo jornalismo e aprender o máximo possível sobre música. É, portanto, quase um aniversário meu.

 

Lembro de ler uma resenha bem fraca na Bizz (edição 92, de março de 1993) falando sobre o álbum do grupo. Um tal de Paulo Cesar Martim batia em teclas carcomidas pelos clichês jornalísticos de então – acusar o líder e cérebro do grupo, Evan Dando, de ser um farsante por apregoar modelos alternativos de música num passado (o grupo fazia então sete anos de existência) e agora, 1993, com um contrato de gravadora grande embaixo do braço, adocicar suas melodias outrora punks para um modelo mais suave. E, mais que isso, fazer sucesso mundial apenas com uma cover, no caso, “Mrs. Robinson”, de Simon & Garfunkel, que foi lançada à parte do álbum e, posteriormente, entrou nas prensagens seguintes de “It’s A Shame About Ray”. A verdade é que o Lemonheads já gravara o álbum anterior, “Lovey”, de 1990, pelo mesmo selo Atlantic, com sucesso moderado. O fato é que, de 1990 a 1992, o grunge estourou no mundo, abrindo espaço para um sem-número de bandas alternativas serem ouvidas com mais gentileza, por um público crescente e jovem. Não custava nada olhar isso, né, Bizz?

 

Meu primeiro contato com o disco foi alugando-o na finada e gloriosa Video Game Center, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Ao ouvir os menos de 30 minutos das canções de “Ray”, fui incapaz de identificar um só momento que não fosse sensacional. Tudo ali era maravilhoso, parecia uma conversa de Evan Dando com o ouvinte, na qual ele contava o seu cotidiano de classe média em Boston, de falta de esperança no futuro, de drogas, de amores, de observações e vivências próprias. Só que a parte, digamos, lírica, do álbum, não era o seu maior atrativo. As melodias e arranjos que a banda – além de Dando, nas guitarras e vocais, havia Juliana Hatfield no baixo e vocais e o baterista David Ryan – oferecia eram uma mistura bem resolvida de punk, pop, folk, rock e até um pouco de country, tudo processado e uniformizado dentro daquele universo da subúrbia americana do início dos anos 1990. Se a globalização chegara para todos, não necessariamente ela acenava com tempos melhores e isso poderia ser notado pela falta de esperança e pelo futuro ignorado pelos personagens de “Ray”.

 

Mesmo carataço, eu adorava “My Drug Buddy”, uma das faixas lentinhas do álbum. Era um tipo de amizade e relação entre um casal que surgia de uma carência comum, além do sentimento, que perpassava pela descrença na vida e na melhoria de tudo, daí a desilusão tomava conta. E a série de canções que contava histórias apontava para várias variações deste microcosmo. Tinha a paixão pela menina que se descobre punk em “Alison Starting To Happen” (com um dos versos mais belos da música pop noventista – “She’s the puzzle piece behind the couch??That made the sky complete” -, tem o próprio Dando como sujeito de uma situação em que os pais se divorciam depois de muito tempo juntos (“Confetti”), tem a própria desilusão drogada na faixa-título, que marca uma trip lisérgica de Evan pela Austrália, que serviu de berçário para a maioria das canções. Tem “Bit Part”, a síntese de um romance pós-adolescente da época, em que a menina pede atenção e espaço na vida do menino. Tem “Kitchen”, tem “Rudderless”, tem o disco todo, que, como disse, é perfeitinho e permanece assim até hoje.

 

Por conta destes trinta anos, “Ray” foi relançado com uma série de extras, versões em vinil e tudo mais. O Lemonheads teve, ao todo, quatro álbuns nos anos 1990 – além deste e de “Lovey”, vieram “Come On Feel”, de 1993, outro que ouvi antes na Video Game Center e “Car Button Cloth”, de 1996, todos cheios de pequenas pérolas. Além deles, temos a presença de Dando solo na trilha de “Empire Records”, cantando uma bela versão de “The Ballad Of El Goodo” do Big Star. O grupo deu as caras por aqui em 1994 – no auge de “Ray” e “Come On Feel” – para uma apresentação em … Santos. E voltou em 1997, quando tocou em São Paulo e Rio, no Imperator, fechando o festival Skol Rocks, com direito a minha presença na plateia. Nesta altura eu já estava na Rock Press e alguém tentou fazer uma entrevista com Evan Dando, sem muito sucesso, uma vez que o sujeito não falava lé com lé, cré com cré, como diria minha avó. Em tempo: Dando voltaria duas vezes nos anos 2000, para shows mornos.

 

Mais que a doideira de Dando ou sua beleza chapada, é preciso reconhecê-lo como um cara muito importante na linha tensa entre underground e mainstream dos anos 1990. E ele começou a ser definitivo quando lançou “It’s A Shame About Ray”. Aproveite a data para ouvir e conhecer esta belezura.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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