A beleza inclemente de “Estácio Delta Blues”

 

 

 

Juçara Marçal – Delta Estácio Blues

Gênero: MPB, alternativo

Duração: 38:28 min
Faixas: 11
Produção: Kiko Dinucci
Gravadora: QTV

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

Um aviso: prepare-se para ouvir “Delta Estácio Blues”, o segundo álbum de Juçara Marçal. Ele é denso, estranho, inquisidor e inquietante. Tem tradição e muita, muita modernidade. Tem eletrônica, ruídos, percussão, violões, guitarras, teclados e uma visão de mundo que não comunga com a harmonia. Ou seja: as coisas não estão bem e não adianta tapar o sol com a peneira. De quebra, Juçara oferece algumas prováveis respostas para como seria o Blues, um gênero musical surgido no início do século 20, caso ele aparecesse hoje, pleno 2021. Como seria possível para que os herdeiros da diáspora negra, vivendo agora, inaugurassem um estilo musical que lamentasse a dureza da vida, a crueza das relações e a historicamente terrível condição de ter a herança do cativeiro e do desfavorecimento social e econômico que vem como item do pacote e que, mais de um século depois, segue sem reparação? E se, Juçara ainda vai mais além, a gente fundisse o Blues com o Samba, dois estilos igualmente diaspóricos e americanos? Como seriam?

 

Esta é a resposta que “Delta Estácio Blues” vem dar, sem que a pergunta do primeiro parágrafo tenha sido realmente feita. Com a presença de Kiko Dinucci na produção, ela mantém a colaboração que propulsiona a carreira do Metá Metá, materialização desta cena de compositores, produtores e músicos paulistanos que têm atualizado a música brasileira à força. Eles a colocam no mundo da eletrônica, tiram qualquer perspectiva de facilidade e ingenuidade e a conectam, via samples e timbres sintéticos com um passado-futuro que aconteceu e que se oferece para ser transformado num futuro a curto prazo. Ou seja, é música totalmente brasileira como poucos ouviram antes. Tem caos, tem uma beleza em tom ocre, um lirismo dos vitimados esclarecidos, dos desfavorecidos que se organizam para contra-atacar. É algo que vai além da música, pode acreditar.

 

 

As onze faixas do álbum são profundas e atacam em intensidade igual. São estranhas, de difícil digestão, mas que oferecem recompensa garantida para quem empreende. É, acima de tudo, um desfile urbano e violento de um combo que tem opressão histórica, tecnologia abundante, ressentimento e desejo de retaliação, tudo junto, impulsionando canções como a faixa-título, que menciona Robert Johnson e o coloca no Estácio, numa mesa de bar, em contato com a diáspora negra sentida e vivenciada pelo trio Bidi, Baiaco e Ismael Silva, brasileiros, sambistas e boêmios. A ideia dá o tom da unidade que deveria conectar todos os indivíduos na mesma condição, porém, que é historicamente confusa para os que nasceram e nascem no Brasi. A melodia é linda, intencionalmente abortada e sem possibilidades de diálogo com uma beleza mais certinha. Tudo é oblíquo e deliberadamente estranho. Também é assim “Crash”, o primeiro single do álbum, que tem o poderoso verso “venha com fé conferir, a queda de quem com o ferro feriu”, é uma canção eletrônica por excelência, cheia de batidas quebradas, vocais, sons estranhos.

 

Neste mesmo terreno habita outra canção, “Sem Cais”, que é outra pequena maravilha de engenhosidade caótica no estúdio, cortesia da visão inquieta e ampla de Dinucci. “Baleia”, outro momento importante, é alusão ao mamífero oceânico ou à personagem canina de “Vidas Secas”? “Ladra”, parceria com Tulipa Ruiz, é mais clássica dentro deste nicho da poesia concreta-musicada, vinda de São Paulo há tempos. “Lembranças Que Guardei” tem a participação – e a coautoria – de Fernando Catatau, um dos guitarristas inventivos em atividade há tempos no país. Assim como o próprio Kiko Dinucci, Catatau tem assinatura própria e o encontro dos dois estilos é bem legal. “La Femme À Barbe”, com letra em francês, é versão de Brigitte Fontaine, cantora parisiense e o fecho, com “Iyalode Mbe Mbe”, é um canto afro-brasileiro por excelência, com efeito auditivo equivalente a uma exposição do fotógrafo Sebastião Salgado.

 

 

“Estácio Delta Blues” é mais um disco que consagra a cena de compositores, cantores, produtores e artistas paulistas, capazes de sintetizar o melhor da tradição e amarrá-lo no rabo de foguete da tecnologia. O resultado se traduz em visões reais e irreais/ideais de um Brasil que talvez exista. Ou que exista demais. Belo.

 

Ouça primeiro: “Delta Estácio Blues”, “Crash”, “Baleia”, “Sem Cais”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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