“We Are The World” – Um mundo de discos beneficentes

Estão para se completar 40 anos de “We Are The World”, primeira gravação beneficente a fazer grande sucesso mundial e que, real e merecidamente, ficou na História, unindo artistas famosos e famosas de vários estilos, com melodia direta e contagiante, letra com mensagem positiva, tudo em prol da pobre e oprimida África – e inaugurando um filão no mercado e colecionismo de discos, com milhões de pessoas pagando para ouvir alguns segundos de seu ou sua artista preferido(a), e por uma boa causa.

 

Mas, para usar uma frase bonita e exata, tudo na vida é parte de um processo, judicial ou de outro tipo, e “We Are The World” é um ponto alto na linhagem de discos beneficentes. Vamos lembrar aqui alguns belos exemplos anteriores, além de similares contemporâneos, um parágrafo especial para as produções brasileiras nessa área e outro para as inevitáveis sátiras e paródias mundo afora.

 

 

ANTECEDENTES

 

Manifestações discográficas do lado menos selvagem e até civilizado e humanitário do capitalismo já aconteciam desde pelo menos os anos 1940, com os discos lançados pela entidade estadunidense March Of Dimes. Recapitulando: “dime” é o nome popular da moeda de dez centavos de dólar, e um dos maiores sucessos da época da Grande Depressão foi “Brother, Can You Spare A Dime?”, “tem dez centavos aí, meu irmão?”, e em 1938 o Presidente Roosevelt lançou uma campanha contra a poliomelite, fundando a National Foundation For Infantile Paralysis, que incluiu a campanha March Of Dimes, incentivando a população a contribuir com pelo menos dez centavos para ajudar a combater a doença; a campanha fez tanto sucesso que acabou se tornando o nome da própria organização (ativa ainda hoje e dedicada também a outras questões de saúde) e de uma série de discos destinados às emissoras de rádio para divulgar as campanhas anuais da March Of Dimes. Estes discos eram de 16 polegadas, em vinil e em 33 rotações, o mesmo formato da série The Voice Of America, e reuniam gravações exclusivas ou grandes sucessos de celebridades como Judy Garland, Jerry Lewis, Douglas Fairbanks Jr., Benny Goodman, Hank Williams, os Everly Brothers e até Elvis Presley. A série de discos March Of Dimes não gerava direitos autorais ou conexos, e os selos traziam o período em que os discos deveriam ser tocados e os avisos “licenciado apenas para execução em rádio” e “favor destruir este disco após a campanha”. Felizmente, nem todo mundo obedeceu estas ordens à risca e alguns exemplares sobreviveram, beneficiando a seus donos e donas nos ebays da vida e, melhor ainda, belas reedições em vinil e CD.

 

Os discos da March Of Dimes tinham tiragem e divulgação restritas; em 1963 veio outro grande passo, com o LP All Star Festival, vendido em lojas e com a maior parte da renda destinada a pessoas refugiadas. O álbum foi produzido pela ONU em parceria com a gravadora Philips e distribuído em todo o mundo (110 países!); um disco reunindo gravações de artistas como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Doris Day, Mahalia Jackson, Maurice Chevalier só poderia fazer muito sucesso, e fez, inclusive no Brasil, não faltando grande divulgação em rádios, “um grande disco para uma grande causa!”. Alguém reparou da ausência de rock nesse disco? Mas isso não houve em outro álbum beneficente da ONU com a Philips, World Star Festival, que incluiu sucessos de Sonny & Cher, os Bee Gees, Dusty Springfield, Simon & Garfunkel e as Supremes, além de Julie Andrews, Frank Sinatra, Tom Jones, Andy Williams e Barbra Streisand. E em 1971 a parceria nos trouxe o ainda mais eclético Top Star Festival, reunindo Engelbert Humperdinck, Nana Mouskouri, os Osmonds, James Last, James Taylor, Johnny Cash, Donovan e surpresas como a banda prog Ekseption e o combo de soul-funk-rock Mandrill.

 

 

Em nível mais restrito mas igualmente eficiente, a Lord’s Taverners, fundada em 1950 e ainda bem ativa e ativadora, também se valeu da música para se tornar a maior organização esportiva beneficente inglesa. Em parceria com a gravadora Decca, nos anos 1950 e 1960 a Lord’s Taverners lançou vários discos com toda a renda destinada à National Playing Fields Association, juntamente com os direitos autorais e conexos de artistas e editoras. Os primeiros foram a série All-Star Hit Parade, com edições em EPs de vinil e 78 rpm com sulco mais estreito, cada um reunindo seis faixas de artistas então de sucesso como Tommy Steele, Lita Roza e as Beverley Sisters. Pelo menos um lançamento da Decca em conjunto com a Lord’s Taverners é bem conhecido para além do Reino Unido: o LP Fourteen, de 1964, lançado nos EUA com título England’s Greatest Hitmakers e no Brasil como 14 Grandes Da Juventude. Esta coletânea merece um trecho de parágrafo mais longo, por vários e bons motivos. Quase todas as gravações são inéditas, ainda que não feitas especialmente para este disco. Uma das faixas é dos Rolling Stones, “Surprise, Surprise”, com poucas reedições desde então. “Nothing’s Changed” é uma das poucas gravações dos Zombies lançadas no Brasil. Temos ainda o Them, Lulu, Tom Jones, Bern Elliot, The Applejacks (não, a contrabaixista Megan Davies não era parente de Ray Davies como muita gente chegou a pensar). A edição ianque manteve na contracapa a informação da capa inglesa original de que os direitos e cachês iam para a Lord’s Taverner; a brasileira também – mas somente nas primeiras tiragens, encoberta com uma faixa branca nas seguintes.

 

 

Falar em Rolling Stones lembra quem? Isso mesmo, Beatles, que abrem No One’s Gonna Change Our World, álbum lançado em 1969 pela EMI em benefício do World Wildlife Fund, organização fundada na Suíça em 1961 para preservação da natureza e de espécies ameaçadas de extinção. Numa reunião do WWF em 1967 no Palácio de Buckingham, o humorista Spike Milligan, representando várias pessoas do ramo do entretenimento, sugeriu que o órgão lançasse um LP com todos os direitos revertendo para o WWF; tal LP acabou sendo este, embora editado apenas na Inglaterra. O disco inclui os Hollies, Cilla Black, Cliff Richard e os Shadows e Spike Milligan (presença bem merecida) além de artistas não da EMI, como os Bee Gees e Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich. Muitos e muitas de vocês já devem saber que a faixa dos Beatles neste disco é “Across The Universe” em sua primeira mixagem, diferente da versão incluída poucos meses depois no álbum Let It Be, na qual Phil Spector acrescentou um coral e uma orquestra (com arranjo do não creditado Brian Rogers) e removeu o efeito sonoro de pássaros e as vozes das fãs Lizzie Bravo e Gayleen Pease. E a faixa dos Hollies, “Wings”, também foi exclusiva deste disco por décadas.

 

 

Falar em Beatles nos remete a George Harrison e ao provável grande ancestral direto de “We Are The World”: “Bangla-Desh”, lançada em compacto em julho de 1971 e, até prova em contrário, a primeira canção composta especificamente em apoio a uma população desfavorecida (“precisamos aliviar a Nação Bengali”) e lançada com todos os direitos revertidos para caridade a tal população, o equivalente poprockaridoso (gostaram?) de “Abre Alas” de Chiquinha Gonzaga (primeira canção composta especialmente para o Carnaval). Em seguida, no primeiro dia de agosto, Harrison promoveu um concerto beneficente – sim, precursor do concerto Live Aid – , reunindo outros astros como Leon Russell, Billy Preston, Bob Dylan, Eric Clapton, a banda Badfinger, Ravi Shankar e Ringo Starr, resultando no álbum triplo The Concert For Bangla Desh, lançado em dezembro de 1971, com renda total destinada ao George Harrison Fund na UNICEF, inclusive as reedições em CD e os vídeos correspondentes em VHS e DVD (embora os proventos relativos ao LP tenham demorado anos para chegar à Africa devido à burocracia do imposto de renda estadunidense). E Harrison encaminhou os direitos de quase todas as faixas de seu álbum seguinte, Living In The Material World, para a Material World Charitable Foundation.

 

(Um parêntese. Harrison participou de outro projeto beneficente, o álbum Nobody’s Child: Romanian Angel Appeal, lançado em 1990 e dedicado às crianças órfas romenas; ele comparece com sua outra grande banda, Traveling Wilburys, interpretando “Nobody’s Child”, clássico da country music também gravado pelos Beatles acompanhando o cantor e guitarrista Tony Sheridan em Hamburgo; uma curiosidade é que nessa gravação temos apenas Sheridan, que se garantia como guitarrista, e a então cozinha dos Beatles, formada por Paul McCartney e Pete Best. Realmente, “Yesterday” não foi a primeira gravação dos Beatles sem Lennon e Harrison. E o Beatle Quieto é um dos alvos de uma gravação curiosa: “Bird Of Peace”, lançada em 1981 pela equipe inglesa de humor Spitting Image como sátira ao combo álbum-filme-show The Last Waltz de The Band. Além de George Harrison, ou seja, “George Harrassing”, outras celebridades esculhambadas são “The Bland”, “Neil Dung”, “Frank Sumatra”, “Dean Martian”, “Bob Vylan”, “Leonard Crowing” e o grupo “HeeBeeGeeBees”, cada um cantando um trecho da letra, funcionando como sátira ao filme The Last Waltz e também como antecipação a “We Are The World”…)

 

 

Outro elo, e dos mais fortes, entre The Concert For Bangla Desh e We Are The World é o album The Music For UNICEF Concert: A Gift Of Song, lançado a partir de um show em Nova Iorque em 1979 e reunindo artistas como ABBA, Elton John, os Bee Gees, Rita Coolidge e Rod Stewart. Detalhe: Rod participa com seu hit “Da Ya Think I’m Sexy?”, notoriamente baseado em “Taj Mahal” de Jorge Ben Jor, que inclusive entrou na justiça e ganhou; ganhou, mas não levou em termos de direitos autorais, doados por Rod à UNICEF…

 

 

 

 

SIMILARES

 

 

A exatidão obriga a lembrar: “We Are The World” teve, além de “Bangla Desh” de George Harrison, outro precedente, e mais imediato: “Do They Know It’s Christmas?”, lançado na Inglaterra em novembro de 1984; seus correspondentes norte-americanos, o canadense “Tears Are Not Enough” e o estadunidense “We Are The World”, saíram no março seguinte, e este último teve muito, muito maior repercussão, inclusive em nível mundial, a ponto de ser considerado o grande símbolo dos discos beneficentes. E, assim como em 1956-7 apareceu uma chusma de cantores de rock, em 1960-63 brotaram do solo ianque bandas de rock que tiveram que enfrentar a praga de bandas inglesas de 1962-64, os anos 1984 e 1985 foram um imenso bazar beneficente, com pelo menos uns 20 LPs e compactos em prol de diversos e diversas países, associações, entidades e tópicos como ecologia e saúde pelo mundo afora, alguns reaproveitando sucessos antigos (“Last Christmas”, “Ferry Cross The Mersey”, “Dancing In The Street”), mas na maioria trazendo canções novas compostas especialmente para as campanhas a que se destinassem. Como bem resumiu o jornalista inglês Tom Hibbert, o rock deixou de ser “rebelde sem causa” e se tornou articulado pela Causa, com seu idealismo mais focado e mais disposto a impactar positivamente o mundo dito adulto, para além do pop-rock.

 

 

Uma ligeira ideia da quantidade de gravações beneficentes dos anos de 1970 aos 2020 pode ser conferida aqui: https://en.wikipedia.org/wiki/Charity_record – e ainda esqueceram algumas! Uma destas é “Spirit Of The Forest”, de 1989, composta pelo saudoso Kenny Young (você o conhece mesmo sem saber, de sucessos como “Under The Boardwalk”, “I’ve Got Sand In My Shoes” e “Arizona”) em prol de nossa (ao menos em termos) Floresta Amazônica e que, além de indígenas estadunidenses e brasileiros, inclui Brian Wilson, Dave Gilmour, Kate Bush, Joni Mitchell e até Iggy Pop numa lista que lida daria mais que os cinco minutos da gravação – , e na edição brasileira incluíram um trecho em português com Rita Lee, Djavan, Gilberto Gil, Gal Costa, Sandra de Sa, Renato Russo e Marisa Monte (“they’ll never break the spirit of the forest”/“jamais vão quebrar o espírito das matas…”). Outra é “Cantaré, Cantarás”, de 1985, em prol da UNICEF e reunindo astros do mundo latino como Lucho Gatica, José Feliciano, Roberto Carlos, Julio Iglesias, o grupo Menudo e até o humorista Cantinflas, sob o nome “ad hoc” Hermanos (sem “Los”) e com autoria dos grandes “hitmakers” Albert Hammond e Juan Carlos Calderon. Esta lista da “Uiqui” conseguiu esquecer também do álbum No Boundaries: A Benefit For The Kosovar Refugees, de 1999, aquele que inclui o Pearl Jam interpretando “Last Kiss” de Wayne Cochran, além de Neil Young, Black Sabbath, Peter Gabriel e Alanis Morrisette, e que teve faixas bônus diferentes em alguns locais onde foi lançado, inclusive o Brasil, com gravações de Mestre Ambrosio e Dread Lion e título traduzido, Sem Fronteiras – Em Beneficio Dos Refugiados De Kosovo (ah, agora lembraste deste disco).

 

 

NO BRASIL

 

Muita gente talvez tenha se surpreendido ao saber que os “charity records” não se iniciaram com “We Are The World” mais do que a pirataria fonográfica surgiu com The Great White Wonder de Bob Dylan. E outra camada de surpresa pode ser a de que a discografia beneficente brasileira não começa com “Chega De Mágoa”; há alguns precedentes.

 

Um dos que localizei foi lançado em 1952 e é, sem dúvida, o recordista em baixo custo de produção – e nem título tem. Trata-se do lado-B de “Meu Rouxinol”, bela marcha-rancho composta por Pereira Matos e Mario Rossi e cantada por Dalva de Oliveira em homenagem ao grande cantor Francisco Alves, recém-falecido num acidente automobilístico. Este lado-B traz apenas o sulco sem gravação, três minutos de silêncio, como homenagem da gravadora ao cantor, e o selo do disco diz: “A Odeon, continuando a campanha filantrópica a que Francisco Alves dedicou os últimos dias de vida, doará às duas instituições de caridade que mereceram a sua proteção [a mais famosa sendo a Casa de Lázaro, de assistência à infância e ainda ativa] os direitos artísticos e autorais que seriam devidos ao saudoso cantor se nela houvesse uma sua gravação.” Bela homenagem – e, com o tempo, também curiosa: a Odeon antecipava em 30 anos outro seu ilustre lado-B de “nada”, o de “Você Não Soube Me Amar” da Blitz, e nota-se que John Lennon não foi muito original ao lançar nada menos de duas faixas silenciosas, “Two Minutes Silence” e “Nutopian International Anthem”, por sinal que pela matriz inglesa da mesma Odeon. (Lembremos que Chico Alves havia destinado à Casa de Lázaro os direitos de seu disco mais recente – e, infelizmente, o último – , o megahit “Canção Da Criança”.)

 

Outro exemplo brasileiro precursor de que tenho notícia é o LP Show André Luiz, lançado em 1962 pela gravadora Chantecler e com renda das vendagens e direitos dos artistas indo para a Casa da Criança André Luiz, entidade assistencial a crianças deficientes física ou mentalmente; o álbum é uma interessante coletânea que inclui samba (“Sonhei Com Você” na voz de Leila Silva), bolero (“Agora” com Francisco Petronio), música grega em ritmo de baião (“Cantinho Do Coração” com Palmeira e Biá), música caipira (“Sacy” com Alberto Calçada) e até rock (“Bata, Baby” com Wilson Miranda). Lembro-me também, sem muitos detalhes (e o Google lembrou ainda menos que eu) de Me Olvidé, coletânea de sucessos lançada em fita cassete em benefício do Hospital do Câncer.

 

 

“Chega De Mágoa”, mais que imitação de “We Are The World”, lançada apenas três meses antes, foi uma das consequências do megassucesso desta. Mas não foi a única; o Brasil também teve sua pequena onda de discos coletivos beneficentes, e aqui vão alguns de que tenho notícia.

Se de “Chega De Mágoa”, interpretado por profissionais da música, já houve quem não gostasse, o que dizer de uma gravação semelhante, e do mesmo ano de 1985, cantada por Rivelino, Leão, Vera Mossa, Hortência, Amyr Klink, Emerson Fittipaldi, Eder Jofre, mais Osmar Santos e Athaide Patrese? Pelo menos quem compôs não foi Pelé, mas sim Sá e Guarabyra, e o resultado surpreende pela qualidade inesperada. A entidade beneficiada foi o Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo; a campanha chamou-se S. O. S. Vidas; a canção – de letra sucinta e melodia mais inventiva que “Chega De Magoa” – intitulou-se “O Homem, Amigo Do Homem”; e a gravação saiu num compacto com crédito a Os Campeões, com o acompanhamento instrumental no lado B.

 

 

Paul McCartney não conseguiu participar de “Do They Know It’s Christmas” mas compareceu com uma mensagem falada no lado-B, “Feed The World”, além de inspirar um belo parente de “Chega De Mágoa”: “Quantas Pessoas”, versão de Marcio Malão e Affonso Jr. para sua “How Many People”, por sua vez inspirada na vida e morte de Chico Mendes. Esta gravação saiu pela Philips em 1991 e as 49 pessoas participantes incluem Eduardo Dusek, Marisa Orth, Lô Borges, Ednardo, Robertinho Do Recife, Margareth Menezes, Frejat, Baby Consuelo, Jane Duboc, Ed Motta, Paulo Jobim e o quase inevitável Fagner, além de Tavito no arranjo vocal.

 

 

Margareth Menezes está presente também em “We Are The World Of Carnaval”, na linguagem musical da chamada “axé music”, lançada em 1988 com participação de mais gente “arretada” como Lazzo, Ricardo Chaves e o guitarrista Armandinho; a menção a “diabo no quadril” não impediu este disco de ter sua renda destinada às obras assistenciais da religiosa Irmã Dulce e assim garantir presença neste artigo.

 

A ascensão da onda breganeja no começo dos anos 1990 não poderia deixar de inspirar um disco beneficente coletivo, no caso o LP Criança Esperança em prol da UNICEF, lançado pela gravadora Continental em 1992, incluindo a canção “Eu Sou Luz”, composta por Roberta Miranda e incluindo artistas não-urbanos de raiz, como Tonico e Tinoco e Gaúcho da Fronteira, junto a Leandro e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano e Chico Rey e Paraná. Uma curiosidade deste disco é a gravação, feita num processo chamado “holofonia sônica”, criado no Japão pela Roland, do qual “Eu Sou Luz” foi a primeira gravação brasileira (mas houve outras?).

 

No mesmo ano de 1992 tivemos outro disco breganejo coletivo em prol de uma causa, no caso o combate à AIDS, mas não vinculado a entidade assistencial e sim apenas ao, como diz a capa do disco, “Projeto Síndrome”, composto e lançado de forma independente pela dupla goiana Eddu e Edduardo (não me xinguem, a dupla é que se assina assim) junto a mais de dez artistas igualmente famosos e famosas.

 

 

 

PERMANÊNCIA CULTURAL (gostaram?), SATIRAS E PARODIAS

 

Sim, a noção de gravação beneficente já é tão comum e natural quanto discos ao vivo, coletâneas, discos de efeitos sonoros, de humor, infanto-juvenis, retrospectivas de ano, documentários de futebol ou qualquer outra categoria que também mereça prateleira ou escaninho especial e até entrou para o inconsciente coletivo. A própria indústria da música ajudou, bastando lembrar o grupo/armação infanto-juvenil Polegar com “Tô Pê Da Vida”, versão de “Tutta La Vita” de Lucio Dalla, mas com um detalhe ausente da letra original: “Tô Pê Da Vida/Tão pondo fogo no planeta/E quem não tá vira careta/A fina flor do preconceito/De cor, de raça, de sujeito/Isso tem jeito! Isso tem jeito!/‘We Are The World’ lá nas paradas/E gerações desperdiçadas/Em tantas lutas sem sentido/Fecha as cortinas do passado/Mundo grilado, dolorido/Que se conforma.” Coincidência ou não, a gravadora do Polegar era a mesma do USA For Africa… E os discos beneficentes estiveram na mira da crítica musical inglesa, que cada vez mais substituía exatidão e informação por jogos de palavras, frases de efeito e baixo calão, como atesta a recepção do jornal Sounds a Can’t Wait To See The Movie, álbum solo de Roger Daltrey de 1987: “As pessoas não compram discos por caridade, Roger. Bem, podem até comprar, mas não o teu.”

 

Assim como a manhã se sucede à noite, era inevitável aparecerem sátiras e paródias de “We Are The World”. Muitos e muitas de vocês já devem conhecer as muitas esculhambações da equipe estadunidense de humor Saturday Night Live, começando por “Career Aid” (1985), “Recurring Characters For Unity” (1993, reunindo personagens famosos de séries de televisão estadunidenses), “We Are The World 3” (de 2010, incluindo imitações de artistas mais recentes como Lady Gaga, Eddie Vedder e Rihanna, além de David Crosby e Al Jardine, “em prol das vítimas do desastre que foi o We Are The World 2”) e até uma gravação em prol da liberdade das galinhas (“Musicians For Free-Range Chickens”, 1991). E a lista da Wikipedia esquece a canção “S. O. S. Italy” do grupo satírico italiano Squallor, lançada em 1985 e cuja letra diz, numa tradução: “Prezado Michael Jackson/você que envia dinheiro para a África/para fazer renascer a esperança/lembre-se de nós que estamos em Nápoles/e faça um disco para nós também/daí envie-nos o dinheiro, muito dinheiro, e estaremos quites/se quiser, mande também para Bari e todo o Sul da Itália/Faça para nós uma música com o amigo Stevie Wonder e depois mande-a para Sanremo ou Festivalbar/mas envie-nos o dinheiro/a situação financeira da Itália está ruim/Prezado Bob Dylan/Você que canta na casa de Reagan [presidente dos EUA de 1981 a 1989] quando Gromiko ou Gorbachov estão lá, o dinheiro de quatro testes nucleares, envie-o aqui para a Itália/Assim que puder, envie-nos o dinheiro/Porque sem dinheiro é uma bagunça amarga/Então nos envie o dinheiro/Também o seu e o de Diana Ross/Por fim, Mike,/Diga isso também a Berlusconi [Silvio Berlusconi, então primeiro-ministro da Itália]/Vamos ganhar milhões como o Jr. [Pier Silvio Berlusconi, filho de Silvio]/E às margens do mar dólares em dinheiro/Para a África cantar para a Itália.” Ah, sim: a autoria de “S. O. S. Italy” é dos grandes “hitmakers” Daniele Pace (“Nessuno Mi Puoi Giudicare”, “La Tramontana”), Giancarlo Bigazzi (“Luglio”, “Una Lacrima”, “Eva” – sim, a regravada pelo Rádio Táxi – , “Gloria”) e Toto Savio (“Cuore Matto”, “Um Gatto Nel Blu”, que em 1971 resolveram se divertir fundando o Squallor, uma espécie de Traveling Wilburys da pastaciutta.) Outro detalhe do verbete sobre “WATW” da bem-intencionada Wikipedia é a menção de que em 1988 a revista MAD mencionou em uma sátira a canção “We Are The Worst”; este que vos escreve não a encontrou, mas descobriu que o trocadilho “We are the worst” é irmão de “Aqui jazz”, de menção obrigatória por toda pessoa ao menos uma vez – inclusive Rita Lee, que assim definiu “Chega De Mágoa”, mesmo tendo participado; realmente, “ironia é veneno que mata também quem o emprega”, e Rita não perdoava nem a si mesma…
E o impacto de “WATW” neste país tropicão do Third World foi e vai muito além das gravações supracitadas. Ouvi falar de pessoas empreendedoras à porta de lojas no centro de Sampa vendendo a letra traduzida do hit em questão. Mas o espirito esculhambador e irreverente brasileiro se manifestou logo, já em 1985, desde a paródia popular “me arde o olho, me arde a vista” ao profissionalismo do Planeta Diário pré-Casseta em traduções como “a gente somos o mundo, a gente somos criança, a gente somos inútil” e na manchete “artistas gravam LP para socorrer as vítimas de Fagner”. Quatro anos depois, João Penca e Seus Miquinhos Amestrados incluíram como encerramento de seu álbum Sucessos Do Inconsciente a faixa “SOS Miquinhos (Merdley)”, uma amostra daquelas paródias juvenis antecessoras de “me arde o olho”, como “estou amando loucamente uma lambisgoia que so tem dois dentes”, “ela é horrível”, “pode vir quente que já tá crescendo” e algumas dos Beatles (“feche os olhos e sinta…”), estas recitadas e não cantadas, para fugir de encrencas com as editoras originais, se bem que as sequências de acordes servem de pista. Sátira mais afetuosa a “WATW” é “We Are The World Of Caiubi”, composta por Tato Fischer nos anos 2010 em homenagem ao Clube Caiubi de Compositores, reunindo artistas independentes de Sampa e de toda parte; a canção foi apresentada num dos saraus/shows do Caiubi; minutos antes pessoas musicistas presentes foram convidadas a participar do acompanhamento, inclusive, ao contrabaixo, este que vos fala – e que dias depois recebeu convite prazerosamente aceito para integrar Tato Fischer & A Banda.

Por sinal, e inevitavelmente, as sátiras a “WATW” incluem algumas pratas/latas da casa. Nos programas da Rádio Matraca, Laert Sarrumor mandou um “We Argh The World” e cantarolou “chega de Faaaaaagner”. E em 1986 este que vos sempre escreve compôs, gravou e lançou o “Hino Da Dependência”, reunindo o citado Sarrumor e Mario Manga (após ser Mario Biafra e antes de ser Mario Aydar), Tom Zé, Tony Campello, Katita Morais, Mily e Fabian Chacur; embora a gravação tenha sido feita com cada pessoa cantando em separado, Tony se revelou nosso Bruce Springsteen, comandando o refrão; “A vida há de melhorar quando o Brasil acabar…”

 

 

Ayrton Mugnaini Jr.

Ayrton Mugnaini Jr., paulistano de 1957, é de tudo: jornalista, compositor, escritor, pesquisador de música popular, autor ou colaborador de mais de 20 livros sobre artistas como Adoniran Barbosa, Raul Seixas, Elis Regina e a banda Queen e assuntos como música sertaneja e rock brasileiro. Co-produz o programa Rádio Matraca, na USP FM. Foi integrante da banda Magazine, de Kid Vinil. Integra a diretoria do Clube Caiubi de Compositores. É compositor do grupo Língua de Trapo, além de integrante d’A Banda de Tato Fischer e maestro da banda do Sarau do Circo, do Centro de Memória do Circo. Autor das primeiras grandes pesquisas sobre música e circo e festivais de música. E faz questão de arrumar tempo para colaborar no Célula Pop.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *