35 anos e a rainha segue firme

 

Quem estava por aqui em 1986 lembra da chegada de “The Queen Is Dead”, terceiro disco de inéditas dos Smiths. Ele veio aos poucos, com singles e EPs, uma novidade que dava as caras aqui, uma vez que a Warner brasileira havia adquirido os direitos sobre a Sire, selo americano que distribuía por lá os lançamentos da Rough Trade inglesa, gravadora dos Smiths. A banda adorava lançar músicas isoladas, maxi-singles e demais formatos. Daí, para testar o mercado por aqui, a multinacional americana, liderada pelo executivo francês André Midani, investiu no lançamento do EP “The Boy With The Thorn In His Side” já no início de 1986. Lembro de comprar o meu na filial da Gabriela Discos do Rio Sul e devorar as três canções como se não houvesse amanhã: além da faixa-título, tínhamos “Asleep” e “Rubber Ring”. Meses depois chegou o maxi-single de “Panic”, que havia chocado o mundo mais antenadinho por conta de seu refrão que pedia “hang the DJ”, ou seja, enfoquem o DJ. Mais tarde a banda explicou que o motivo do verso era a falta de sensibilidade de um programador da BBC que tocara uma canção de George Michael logo após falar do acidente em Chernobyl. Morrissey e Marr estavam ouvindo o rádio naquele momento, azar do DJ. Sorte a nossa.

 

Peço desculpas. Comecei a falar do disco e nem o contextualizei, né? Falta de noção, algo inadmissível num escriba já calejado pelo tempo. O fato é que este terceiro disco dos Smiths, junto com “Unforgetable Fire”, “Under a Blood Red Sky”, “War” (do U2), “The Head On The Door” (do The Cure) e o disco homônimo do Echo & The Bunnymen, de 1987, compreendem a espinha dorsal do que eu ouvia naquele tempo em termos de rock britânico alternativo. Pouco tempo depois eu mergulhei com força em outro tipo de som, também britânico, também daquela época: Style Council, Aztec Camera, Everything But The Girl e Prefab Sprout, com Housemartins correndo por fora, mas aí já é outro texto. Nenhum desses discos mencionados aqui tinha, na época, o status que “The Queen Is Dead” detinha. Era a obra máxima para meus 16 anos de idade. Era o que eu deseja ouvir junto com o “Dois” da Legião Urbana. Parecia que todo o existencialismo que eu precisava estava ali, naquelas canções.

 

Morrissey estava no topo da forma. Sua militância vegetariana ainda não dera as caras, tampouco sua abjeta faceta racista e xenófoba, que praticamente o vetaram de minhas caixinhas de som até agora. Era só um romântico auto-irônico, debochado e muito, muito triste. Ao lado, Johnny Marr, um dos maiores guitarristas ingleses dos últimos 40 anos, desabrochando para as maravilhas do estúdio e da produção, entrelaçando violões e guitarras, fazendo melodias impressionantes. E, atrás deles, Andy Rourke e Mike Joyce, a cozinha padrão, enxuta, eficiente e que dava a sustentação necessária para M & M voarem em segurança. Na capa de “The Queen Is Dead”, Alain Delon em “L’Insoumis”, filme francês de 1964 e o título: “A Rainha está morta”.

 

Para um país contraditório como a Inglaterra, dizer isso numa capa de disco é cutucar um vespeiro sem luvas. Muita gente amou, muita gente odiou e Morrissey, além de cool e ecologicamente correto, cavava um espaço na política daquele tempo, o que era justificável e adequado. Porém, uma olhada mais atenta a algumas letras, já mostravam que estávamos diante de um sujeito minimamente questionável em alguns pontos, porém, não vamos falar disso por aqui, justo para não estragar o brilho do disco que, repito, àquela época parecia muito próximo da perfeição. Como os Smiths adoravam lançar singles e EPs, a gravadora acabou condensando vários deles, todos compostos e lançados entre 1985 e 1986 numa compilação maravilhosa, chamada “The World Won’t Listen”, que também chegou por aqui, pouco tempo depois do álbum. Sendo assim, o mais indicado era ter os dois, que funcionavam como um disco duplo. Nela estavam as duas faixas que considero – por questões de tempo e tema – também integrantes de “The Queen Is Dead”: “Ask” e “Panic” a exemplo do que aconteceu com “Sgt. Peppers” com “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever”, ambas lançadas em compacto e não integrantes do álbum, mas tematica e esteticamente inseridas no contexto.

 

Algumas faixas de “The Queen Is Dead” ainda fazem bonito hoje. Outras só funcionam como nostalgia, o que é perfeitamente aceitável e válido. “I Know It’s Over” é uma dessas que ultrapassaram o tempo e seguem firmes, sólidas, no Olimpo das canções de amor terminado abruptamente. Os questionamentos sobre alguém ser legal, esperto, engraçado, interessante e, ainda assim, dormir sozinho à noite quase encapsulam toda a cultura dos relacionamentos amorosos líquidos dos nossos tempos. Não sei se Morrissey tinha isso em mente quando escreveu a letra, mas esta visão me parece mais sólida do que a provável dor de cotovelo que o autor sentia quando pensou e executou as palavras. “Bigmouth Strikes Again”, por sua vez, ainda que seja um exemplo de pop song alternativa daquele tempo, já me soa terrivelmente aborrecida ao longo desses 35 anos. E não há nada de Bigmouth – apelido do próprio Morrissey – nas declarações nojentas que ele dá hoje em dia. O mesmo posso dizer – ainda que em um nível menor – de “The Boy With The Thorn In His Side”, que também me parece datada e vitimada pelo tempo de forma inapelável, porém, como disse, não é tão sério quanto a antecessora.

 

Do lado das que seguem firmes e fortes, está a jóia da coroa smitheana em todos os tempos, “There Is A Light That Never Goes Out”, o maior exemplo de maestria dos Smiths no estúdio em todos os aspectos. A letra segue dilacerada, urgente, suicida, o arranjo de cordas é lindíssimo, os sopros, tudo é perfeito e segue perfeito nela. Outra lindeza atemporal – que cresceu com o tempo – foi “Some Girls Are Bigger Than Others”, com sua levada perfeita, sua letra irônica e engraçada e todo o clima que ela suscita. Tudo ainda funciona nela. As faixas menbos badaladas também têm seu charme às vezes intacto, caso de “Frankly Mr. Shankly” e “Cemetery Gates”, mas o tempo vitimou sem dó a faixa-título e “Never Had No One Ever”, que, convenhamos, sempre foi a faixa mais fraquinha do álbum.

 

“The Queen Is Dead” é uma unanimidade entre os indies quarentões brazucas. Faz sentido. Foi com ele que esse pessoal encontrou a magia do rock alternativo quando este termo ainda significava alguma coisa. Bandas como Smiths eram, de fato, muito diferentes de, vejamos, Queen, só para citar uma banda de rock que não era alternativa. Ouvir esse pessoal alternativo, independente, em pleno 1986, meio do caminho da década em que o mundo disse “sim” ao neoliberalismo como ideologia econômica, era, sim, abrir mão de fazer parte de uma coletividade maior, de pertencer ao grupão do colégio, de ser popular, de compactuar com um monte de coisas que eram opressoras. Ouvir essa gente era dar um discreto grito de independência em relação a várias posturas, assumir outras e se identificar no mundo. Fazer isso pela primeira vez, entre 15 e 16 anos, faz parte indissociável da nossa vida. Mesmo que a gente olhe para trás com cinismo e coração duro, lá dentro, nosso adolescente ainda se emociona com essas letras e canções. E as dedica para musas que seguem insondáveis, inatingíveis, impossíveis, como tudo que realmente vale à pena nessa vida.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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