Melancolia existencial sob as luzes da pista de dança

 

 

 

Everything But The Girl – Fuse
35′, 10 faixas
(Buzzin’ Fly/Virgin)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Tracey Thorn e Ben Watt se conheceram em 1981 e estão juntos desde então. Em 1983 se lançaram como o duo Everything But The Girl, primeiramente como uma das formações praticantes do pop sofisticado daquele tempo, que muita gente chamava de new bossa. Ao longo do tempo, a sonoridade da dupla fui mudando levemente, incorporando novos elementos, até que, no início dos anos 1990, Ben foi diagnosticado com uma doença autoimune, que quase lhe custou a vida. Coincidência ou não, foi neste momento que o interesse musical do casal mudou de cara, abraçando a música eletrônica fervilhante daquele tempo. Tracey passou a ser convidada pelo Massive Attack para emprestar seu vocal único a faixas como “Protection” e a versão de “The Hunter Gets Captured By The Game”, que entrou na trilha sonora de “Batman Eternamente”. Os álbuns do EBTG também refletiram esta mudança – “Amplified Heart” (1994) e “Walking Wounded” (1996) – e uma faixa em especial marcou essa época – o remix de Todd Terry para “Missing”. Três anos depois, definitivamente consolidado como artista de música eletrônica, o Everything But The Girl lançou seu último álbum: “Temperamental”. De lá pra cá, Tracey investiu na carreira solo, escreveu quatro livros de memórias, tornou-se colunista da publicação The New Statesman. Ben mergulhou na música eletrônica, depois retornou ao pop, lançou dois álbuns de sucesso, ambos em parceria com Bernard Butler, ex-Suede, e também escreveu um livro sobre sua luta para sobreviver à doença. Apesar de juntos desde 1981, Ben e Tracey se casaram em 2009 e têm três filhos. Pronto. Agora vamos falar de “Fuse”.

 

 

Esse parágrafo biográfico é importante para reforçar uma característica decisiva neste novo trabalho: a necessidade de expressão. A gente pode perceber que, mesmo fora do EBTG, Ben e Tracey são pessoas ocupadíssimas, cheias de projetos e afazeres, ou seja, se decidiram, após tanto tempo, retomar suas atividades como EBTG, algum motivo muito forte deve ter se imposto e, depois de ouvir as canções de “Fuse”, é possível cravar que a dupla desejou dar uma espécie de testemunho sobre os tempos atuais, especialmente sobre como gente como eles lida com isso. Não é clichê: nossa relação com o transcorrer do tempo é o que temos de mais importante em nossas vidas. O casal, com ambos nascidos em 1962, já viu outros momentos da história recente e pertence a uma geração que foi preparada para viver num mundo que não se concretizou. No futuro deles havia a promessa de prosperidade erguida nos anos 1950, a mesma que colocaria carros voadores e viagens à Lua e a Marte em nosso cotidiano. Não rolou, o mundo piorou, a década de 1970 sentenciou as nações a uma lógica economicista que desaguaria em governos como os de thatcher e reagan e, bem, o resto a gente já sabe. Portanto, é natural que ouçamos as canções deste novo álbum e constatemos que não se trata de um álbum feliz e que celebra a vida. Ele é elegantemente triste, oferece uma sonoridade eletrônica melancólica que opta por ficar no fundo da sala, deixando as letras, os vocais e, sobretudo, as melodias da dupla se mostrarem com mais nitidez.

 

 

Nada em “Fuse” é agressivo ou bombástico, o que não significa que o álbum não seja contundente e belo. Ben e Tracey oferecem esse testemunho geracional de um gosto amargo na boca, algo que pode ser traduzido de forma exemplar em uma canção em especial, presente em “Fuse”, “Lost”. Aqui Tracey enumera uma série de perdas cotidianas, atestando a volatilidade da vida e das relações, para constatar que, após a perda de sua mãe, ela se sente como “tendo perdido tudo”. Viver é perder, viver é deixar pedaços pelo caminho e esta é uma crença constatada a partir dessa mesma existência banal a que somos confinados por conta dos motivos expostos acima. O álbum apresenta essa sonoridade gentil que traduz essa tristeza inevitável de maneira gentil e muito bela. Os timbres são brandos, quase ambientes, enquanto as batidas e as programações enfatizam as melodias e as canções em si, pontuando sua excelência. Em termos estéticos, “Fuse” é um descendente direto dos últimos três discos da dupla, mencionados acima, mas é totalmente sintonizado em 2023, não restando qualquer espaço para revivals ou nostalgias de encher estádio.

 

 

A conversa que Ben e Tracey querem ter com o ouvinte é sobre esperanças perdidas, como a da pessoa que, depois de todo esse tempo, se prepara tendo em vista a noite e a dança como meios de expurgo de suas agruras e não se importa com a chegada da manhã. Este é o tema da mais bela criação deste álbum, “Run A Red Light”, dona de uma das melodias mais belas que ouço em muito tempo. Outra canção, “No One Know We’re Dancing”, é tristemente perfeita, misturando melancolia pós-pandemia com sobrevivência em meio ao cotidiano opressor que não dá trégua através da dança. “Nothing Left To Lose”, o primeiro single de “Fuse”, é uma masterclass de como produzir uma canção com timbres eletrônicos perfeitos, ambiência e estabelecer uma simbiose perfeita com vocais e humanidade, se transformando uma espécie de canção de amor desesperada, na qual Tracey abre mão de orgulhos em favor de ouvir e esperar por quem realmente importa. É algo que a gente só aprende com o transcorrer do tempo, entendem? Outra canções são maravilhosas, como a fluida e perfeita “Caution To The Wind” e “Karaoke”, que, além de mostrar as atuais questões de Tracey para subir num palco, dialoga com a necessidade de criar pequenos paraísos possíveis.

 

 

No fim das constas, “Fuse” é um disco de escape da crueldade midiática e existencial de hoje através do olhar gentil e atento para vivências e experiências. É um dos álbuns mais sinceros e belos que ouço em muito tempo. E, assim como o próprio EBTG em pleno 2023, é algo raro e sensível. Ouça e entenda.

 

 

Ouça primeiro: “Caution To The Wind”, “Lost”, “Run A Red Light”, “No One Knows We’re Dancing”, “Nothing Left To Lose”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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