“Você Não Estava Aqui” é obrigatório

 

 

O diretor britânico Ken Loach está com 83 anos e segue ativo e filmando obras relevantes. Seu mais novo longa, “Você Não Estava Aqui” é um alerta duríssimo sobre os males que a uberização do trabalho pode causar à classe média empobrecida. Se você já viu os kamikazes motoboys que correm pelas cidades para entregar refeições, sabe bem do que estou falando. No Brasil burrista pós-2016, eles são o maior reflexo do momento que vivemos. Loach, no entanto, mostra que esta realidade é global e nos dá a chance de observar uma família de Newcastle, norte da Inglaterra.

 

O marido, Ricky, já trabalhou com todos os tipos de construção civil. A esposa, Abby, é cuidadora de idosos, contratada por uma empresa e precisa fazer uma ronda diária de vários pacientes, o que consome seu tempo quase todo. Os filhos, Seb e Liza, ficam quase por conta própria, não fosse a comunicação contínua que têm com a mãe ao longo do dia. Claro, desse jeito, é fácil perceber que algo vai dar errado logo. E o caldo derrama justo quando Ricky resolve tornar-se um “franqueado” de uma firma de entregas de encomendas. As condições são as seguintes: tem que cumprir uma rota específica, num tempo específico, entregar tudo e se responsabilizar por tudo o que está levando, ou seja, além das encomendas, um scanner caríssimo, que mapeia o trajeto, inventaria as entregas e dispara um alarme se Ricky demora tempo demais fora da van. Ah, sim, a van precisa ser própria ou o “colaborador” precisa pagar um aluguel diário de 65 libras. Logo de cara, um amigo de Ricky sugere que ele leve uma garrafa vazia para poder urinar.

 

Ricky inicia seu trabalho e ficamos sabendo que ele está cansado de trabalhar como contratado, quer ser o “dono do próprio negócio”. Logo fica evidente que as condições, o desespero pelo emprego e as concessões que ele precisa fazer jogarão contra a já frágil estabilidade emocional da família. Logo Seb terá problemas na escola, Liza sofrerá os reflexos em casa e Abby, indo de um lado pro outro, cuidando de idosos complicados, numa jornada estafante, começa a fraquejar, o que leva a família a um nível de estresse enorme.

 

Loach nos mostra, assim como fez em “Daniel Blake”, as situações sociais e econômicas de forma muito clara. Nos vemos nas reações e sofrimento dos personagens e a familiaridade com a nossa realidade é total. O discurso da meritocracia está embutido numa fala bem simples, entre Ricky e o gerente do depósito de encomendas, Maloney:

 

-Aqui tudo é de acordo com a sua escolha.

 

Num tempo em que as pessoas não têm escolha a não ser a submissão total a condições desumanas de trabalho, tal frase soa como uma afronta. O desempenho do elenco é ótimo, mas Debbie Honeywood, que interpreta Abby, é um achado por seu misto de delicadeza, tristeza e força. Sua personagem é uma espécie de esteio para a família e ela surge como o último bastião de lucidez dentro de um mundo que parece se derreter diante dos olhos de todos, elenco e público.

 

Num mundo em que o capitalismo avançou a ponto de erodir a própria noção de trabalho, tornando-o uma atividade em que as regulações e direitos dos trabalhadores se tornaram – aos olhos do empresário – supérfluas e onerosas, “Você Não Estava Aqui” é um grito de “basta” para aqueles que ganham dinheiro e não investem, apenas o veem render, gerando uma letargia na economia, uma sensação de perda absoluta de dignidade e uma tristeza pela inevitabilidade – momentânea, esperamos – dessa condição. O final do filme é absolutamente desconcertante e verdadeiro.

 

Se “Parasita”, “Coringa” e “Bacurau” falam da mesma erosão social decorrente da economia e da desigualdade, mas a colorem com tons surreais e extravagantes, “Você Não Estava Aqui” tem as cores da absoluta realidade. Indispensável e necessário.

 

“Sorry We Missed You”

Inglaterra – 2019

De: Ken Loach

Com: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Katie Proctor e Rhys Stone

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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