The Handmaid’s Tale – Gilead já chegou

 

Ontem terminei de ver a terceira temporada de “Handmaid’s Tale”. Se você ainda não viu ou nem sabe do que se trata, peço que largue tudo e corra atrás. Dá pra ver via torrent e no canal pago Paramount, com uma boa defasagem em relação aos USA. E no Paramount Plus, é possível acompanhar a série com relativa simultaneidade. Seja como for, é quase imprescindível que você conheça e entenda o que está/estará vendo. Por isso este texto, o qual tentarei elaborar sem spoilers, tendo em conta que tudo que ele conterá é de conhecimento público.

 

A série é produzida pela Hulu e se inspirou no livro de mesmo nome, lançado por Margaret Atwood em 1985. Naquele ano, foi uma das publicações mais vendidas nos Estados Unidos, junto com … “1984”, de George Orwell. Escrito em 1948, o livro do autor inglês atingia o ano de seu título e houve comoção mundial, manifestada também na produção de um longa para o cinema, estrelado por John Hurt, com trilha feita pelo duo tecnopop Eurytmics. A canção “Sexcrime” chegou a fazer sucesso nas paradas. O que importa é que ambos os livros são distopias baseadas na realidade do tempo em que são escritas. Aliás, a melhor ficção científica é sempre assim e gera obras sensacionais. Enquanto Orwell escreveu seu romance num mundo devastado pela Segunda Guerra Mundial, Atwood pensava no seu país vivendo a emergência do neoliberalismo, com Ronald Reagen na presidência.

 

Não espanta que a trama de “O Conto da Aia”, seu título em português, tenha uma história tão palpável. Senão vejamos: em algum ponto do futuro próximo, uma facção católica radical tomou o poder nos Estados Unidos. O país rachou, pois houve atentados terroristas que vitimaram os postos do Executivo e o Congresso, deixando o poder vago. A partir daí, a tal facção religiosa se encarrega de assumir a nação “para evitar mais atentados terroristas”, sendo que ela mesma os perpetrou. Tem início a implantação de uma república teocrática, na qual as mulheres são proibidas de ler e trabalhar, sendo destinadas apenas aos afazeres domésticos, respeitando as classes sociais. Temos as “tias” – que são agentes do estado com a missão de “educar” e vigiar; as empregadas domésticas; as esposas e as … aias.

 

Sua função merece uma explicação à parte. Além da montanha russa política, há uma baixa impressionante na fertilidade da raça humana. Em meio ao temor da extinção, a república que se instaura – chamada Gilead – tem a preocupação de destinar um estrato social feminino apenas para a procriação, as aias. Elas são férteis e devem servir ao casal, especialmente ao homem, que irá ter relações quando ela estiver no período apropriado, visando assegurar a reprodução. Sendo assim, as próprias crianças são essenciais e protegidas pelo estado. Como é um lugar altamente religioso, Gilead não permite manifestações culturais, liberdade de expressão ou algo no gênero. É um estado completamente totalitário e punitivo.

 

A série televisiva mostra a história de June Osborne, interpretada pela ótima Elizabeth Moss, uma editora que tenta fugir logo após o golpe que instaura Gilead, com o marido e a filha para o Canadá. Nos primeiros dez minutos do episódio inaugural, já vemos que a tentativa fracassa. June é capturada, sua filha, Hannah, também e o marido, Luke, parece ser morto pela patrulha. Tem início sua saga como aia, em meio ao caótico novo mundo, ao qual ela terá que se adaptar, caso queira continuar viva. O elenco da série é um caso à parte. Joseph Fiennes interpreta o Comandante Fred Waterford, um líder militar do novo país, que não tem qualquer escrúpulos e desempenha todo tipo de assédio moral e físico em relação a June (que perde seu nome e passa a se chamar “Offred” – de Fred – . Aliás, todas as aias perdem seus nomes para se chamarem Of “alguém”, no caso, o nome do homem que a possui). Serena Joy Waterford (a impressionante Ivonne Strahovski) é a esposa do Comandante e igualmente terrível em suas ações. Há também o motorista da família, Nick, que logo mostra-se cheio de mistérios e ambiguidades, interpretado por Max Minghella. Fechando o elenco principal, há a terrível Tia Lydia, vivida por Anne Dowd. Ela tem a missão de “educar” as aias e prepará-las para a missão que receberam na nova sociedade. A qualquer custo.

 

Se o livro foi escrito sob Reagan, a série, lançada em 2017, existe sob Trump. A ideia dos produtores – entre eles, a própria Elizabeth Moss – é mostrar ao público as atrocidades cometidas pela sociedade em relação às minorias. Gilead não tolera LGBT+, impõe a faceta mais cruel da religião católica – a culpa – e não admite qualquer manifestação contra o regime que foi instaurado. As punições são crudelíssimas, com o intento de “dar o exemplo” e evitar que alguém se sinta disposto a discordar. Como é uma sociedade essencialmente patriarcal, os roteiros dos episódios enfocam com muita nitidez inúmeras situações de opressão à mulher, em todos os estratos da sociedade mostrada. Há todos os tipos possíveis de violência contra a mulher que, por mais “ficcionais” que pareçam, já ocorrem hoje, sob a conivência da nossa sociedade que, bem, é igualmente patriarcal.

 

“Handmaid’s Tale” já tem três temporadas. A primeira mostra a vida de Offred/June no novo país. Em seguida ela vai viver situações que vão transformá-la numa líder contra o que surgiu do tal golpe. Em meio a flashbacks, o espectador vai vendo como o país foi implantado à força e detalhes serão mostrados – como as Colônias – que são áreas contaminadas por detritos nucleares, fazendo supor que houve combates terríveis até a queda dos antigos Estados Unidos, que ainda existirão, com um governo sediado em Achorage, Alasca, um dos últimos estados que permaneceram fiéis.

 

Ver a série, repito, é essencial. Além de um ótimo espetáculo visual, cuja fotografia, trilha sonora e direção técnica são irrepreensíveis, é um produto de seu tempo. Denuncia sem abrir mão do entretenimento e alerta sem deixar de lado as verdades que são varridas para baixo do tapete da hipocrisia. Ao longo desses três anos, a série já ganhou mais de 50 prêmios, entre eles, dois Globos de Ouro. É obrigatória porque, se olharmos com atenção, Gilead já chegou.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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