Tim Bernardes – A delicadeza que brota do pântano

 

 

 

 

Tim Bernardes – Mil Coisas Invisíveis
58′, 15 faixas
(Coala Records)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

Está nas plataformas digitais o impressionante segundo álbum de Tim Bernades, “Mil Coisas Invisíveis”. Quem conhece a obra do jovem cantor e compositor paulistano em sua banda, O Terno, e do seu primeiro trabalho solo, “Recomeçar”, já sabe que suas canções fazem parte de um universo em que a delicadeza se transforma em força motriz, oferecendo ao ouvinte uma curiosa e belíssima mistura de passado e presente musicais. O passado vem da herança das sonoridades brasileiras sessentistas, sobretudo Mutantes, Jorge Ben e os baianos, Caetano Veloso e Gilberto Gil O presente vem da inserção de seu trabalho junto ao que se chamada de folk alternativo, um gênero que se popularizou demais no início dos anos 2000, mas que consiste, essencialmente, de revisões sonoras de obras de gente como Neil Young, Nick Drake e outros, devidamente infusionadas por estéticas lo-fi e fragmentos de modernidade estilhaçada na janela sentimental de cada um. Talvez essa descrição arranhe a definição da musicalidade de Bernardes, mas até eu a acho imprecisa, visto que Tim exibe um trunfo típico dos ótimos artistas: a sinceridade. Não há qualquer mis-en-scéne em suas canções, tudo parece paradoxalmente forte, visto que é erguido pela coragem de expor uma delicadeza humana que respinga em música, arranjo, poesia e execução.

 

Engraçado, ou melhor, curioso notar que um país embrutecido e lamentável como o Brasil atual seja o solo do qual brota algo tão belo e límpido como a obra de Tim. Sua proposta é de derreter o gelo presente na descrença de relações e confiança a partir da música. É algo ambicioso, totalmente grandioso e, arrisco dizer, plenamente alcançado em “Mil Coisas Invisíveis”. Ao contrário dos trabalhos do Terno e de “Recomeçar”, aqui Tim rompe uma barreira importantíssima – a da autoria. Suas canções prévias eram boas, cheias de ideias legais do arranjador Tim ou do instrumentista Tim. Mas o compositor, aquele arquiteto de melodias, ainda aparecia tímido em relação ao músico. E a presença de composições suas gravadas por Gal Costa e Maria Bethânia deu conta de que a maturidade havia chegado para esta sua faceta. O novo álbum só faz confirmar isso, estamos diante de um compositor em franca maturação, captando, traduzindo, investigando com dura e desconcertante verdade seus próprios sentimentos e impressões do mundo. Com sua São Paulo como cenário para amores, desilusões, felicidades, recordações e indignações, Tim ergueu um cenário apropriado para desfilar suas canções. Aqui elas estão plenas, prontas para serem apreciadas e compreendidas.

 

São quinze faixas, todas muito belas e bem resolvidas. Tim assina arranjos, produção, vocais e toca todos os instrumentos, exceto baixo, bateria, cordas e percussões. Ou seja, o esqueleto e o revestimento iniciais são seus e ele supervisiona acabamentos e execução. Como um trabalho fruto da pandemia, gravado entre fevereiro e novembro de 2021, “Mil Coisas…” tem amor e tem estranhamento, além de, como estamos no Brasil, indignação e tristeza pela brutalidade que tomou conta. Tem ecos de Bossa Nova, tem nerdice de jovem que mora e habita estúdio e tem violão e piano como grandes e francos companheiros. Tem a já mencionada sinceridade emocional, afetiva. No país dos ritmos que indicam invulnerabilidade emocional e física de quem os canta e produz, um álbum como o de Tim é uma bofetada desconcertante. E necessária. Todas as canções aqui têm cordas, metais, uma aura de revisita a tempos mais gentis e belos, de maneira tão natural que as hipóteses de nostalgia e revivalismo puro e simples estão descartadas. Esta é a estética de Tim e ele já provou isso.

 

É difícil destacar canções de outras neste painel tão belo, mas alguns momentos são maravilhosos. “Mistificar”, que tem clipe rodando por aí, é uma atualização da doçura tropicalista de “Não Identificado”, misturada com peito aberto no espaço e vento frio no rosto. “Nascer, Viver, Morrer” é uma fusão da sonoridade dos americanos do Fleet Foxes (com quem Tim já colaborou) e da canção brasileira atemporal, lírica e romântica. “Meus 26” é um inventário assombroso de lembranças presentes e opiniões sobre o mundo, devidamente revestido por cordas, violões e lindezas e versos como “É, parece que eu completei meus 26, que tudo conspirou até aqui e terminou de uma só vez, São Paulo, minha casa, minha vida, se parece com você, a ruína morta-viva do trabalho, que não para pra não ver”. Como lidar com isso, gente? A São Paulo de Tim também aparece em vários outros momentos, como na doce “Velha Amiga”, em versos como “Vida velha, Avenida Pompeia, memória que me alegra, das coisas mais bonitas que eu vivi”. Tim é memorialista precoce, sua mente parece rodar neste ritmo e ele faz disso algo absolutamente natural. Em “A Balada de Tim Bernardes”, ele homenageia sua falecida avó, em meio a relembranças de quadros, cristais e conversas soltas sobre bruxarias, mistérios do planeta e transformações”. E o amor, puro e simples, presente no single “BB (Garupa da Moto Amarela)”, outra pequena pluma de delicadeza sentimental, contra a dureza e a brutalidade.

 

“Mil Coisas Invisíveis” está fadado a ser um clássico na carreira de Tim Bernardes. Será o álbum em que o artista assumiu sua vindoura condição de grande nome da música brasileira e – quem sabe – mundial. A julgar pela qualidade do trabalho que ele oferece aqui, essa previsão é – como dizia minha própria avó – pule de dez.
Bravo, Tim.

 

Ouça primeiro: “BB (Garupa de Moto Amarela), “Mistificar”, “Balada de Tim Bernardes”, “Meus 26).

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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