“Segredos Oficiais” é o grande filme estrangeiro de 2019

 

 

Não, eu não sou um dos negacionistas em relação à relevância de “Coringa” e e nem penso que o filme estrelado por Joaquin Phoenix não mereça todo o destaque que vem tendo. Mas este sensacional longa sobre um fato real, ocorrido há pouco tempo na Inglaterra, é, digamos, mais relevante e oportuno nos tempos que vivemos. “Segredos Oficiais” é um baita filme, praticamente perfeito, que traz um elenco estelar e um drama terrivelmente atual: o quanto vale seguir suas convicções e ir contra seu governo que, no caso específico do caso retratado pelo longa, é seu patrão?

 

Esta é a história de Katharine Gun, interpretada por Keira Knightley em sua melhor atuação no cinema desde sempre. Ela trabalha no serviço de inteligência britânico como tradutora de mandarin e recebe, às vésperas da reunião do Conselho de Segurança da ONU, um e-mail da NSA, a toda poderosa National Security Agency americana, dizendo que haverá um esforço conjunto com a inteligência britânica, visando “convencer” os outros membros do Conselhor a votarem pela guerra no Iraque. Em outras palavras, aos olhos de Katharine – e de maioria das pessoas – isso quer dizer: espionagem, jogo sujo, interferência política, todos os tipos de tramoia para que a guerra contra o Iraque seja “autorizada”. Estamos em 2002, logo após o 11 de setembro, no tempo em que os Estados Unidos de W. Bush procuravam armas químicas e de destruição em massa no Iraque, “eleito” como colaborador do Talibã. A Inglaterra do trabalhista Tony Blair, considerado um traidor dos ideais do partido, foi seu maior colaborador.

 

Pois bem. Kath vê o tal e-mail e não concorda com seu conteúdo. Acha um absurdo, se sente aviltada, não consegue aceitar que a interferência dos Estados Unidos seja tão grande na Inglaterra. Pensa que não é preciso uma guerra no Iraque ou em qualquer lugar. Pensa que pessoas vão morrer em vão, iraquianos, especialmente. Lembra que o país mesopotâmico tem mais de 30 milhões de habitantes, que nunca foram encontradas armas que pudessem ameaçar o Ocidente, que não há iminência de guerra e que, por fim, tudo aquilo parece errado, desnecessário e ameaçador. E o que ela faz? Não concorda com a mensagem, e resolve contar para uma amiga ativista, que vai entregar o conteúdo do e-mail para a imprensa. Aí começa a melhor parte.

 

A Inglaterra de 2002/03 é uma democracia. O que significa isso? Que a imprensa e os poderes são independentes e que, sim, eles estão funcionando bem. Com a opinião pública desfavorável à ofensiva aliada contra o Iraque, há espaço para que veículos como o The Observer se interessem pela história e a publiquem, indo contra os interesses do governo. E há quem sustente que sim, se trata de uma conspiração para “melar” a já tênue autoridade da ONU diante de interesses americanos. Em meio a este cenário, surgirão várias revelações que darão conta do fato, mostrando o tormento que se abaterá sobre a vida de Kath, que, pra complicar, ainda é casada com um imigrande turco, de etnia curda, que procura obter a cidadania britânica. Mas também surgirão pessoas dispostas a ajudá-la.

 

Com um elenco recheado de ótimos atores, entre eles, Ralph Fiennes, que vive o advogado Ben Emmerson, e Matt Smith (famoso como o Príncipe Phillip em “The Crown), que interpreta o jornalista Martin Bright, “Segredos Oficiais” tem coragem para revelar fatos das leis britânicas que tiveram lugar após ações ilegítimas de governos – especialmente o de Margaret Thatcher em relação à Guerra das Malvinas – e não tem qualquer receio de apontar a cooperação anglo-americana como algo extremamente nocivo para a Inglaterra e para o mundo. Só para registro: a guerra contra o Iraque ocorreu e foi trágica, com perdas de dezenas de milhares de pessoas, especialmente iraquianos, que seriam “libertados” pelo Ocidente.

 

O desfecho do filme é impressionante e ele tem todos os elementos para ser figurinha fácil nas premiações. É uma mistura de “Spotlight” com “Todos Os Homens do Presidente”, obras dispostas a mostrar como o sistema pode ser pobre e vencedor, se não houver gente disposta a atacá-lo e expô-lo.

 

PS: ao ver as instituições e a imprensa britânicas funcionando tão bem, não dá pra pensar no pobre arremedo de estado que temos aqui.

 

Official Secrets”
Inglaterra/EUA, 2019.
De Gavin Hood
Com Keira Knightley, Ralph Fiennes, Matt Smith

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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