The Black Crowes, há 30 anos

 

 

 

The Black Crowes? Aquela banda que se destacou no início dos anos 90 imitando Rolling Stones de vinte anos antes e Faces também daquela época? Vamos perder tempo com isso?

 

Vamos, sim, e espero que valha a pena. Resumo desde já meu argumento: reduzir a Black Crowes a um culto do passado é desprezar as razões que (felizmente) inseriram a banda em um cenário dominado tanto pelo grunge quanto pelo hard rock.

 

Não trato aqui de toda a atribulada trajetória da banda, com altos e baixos. O tema é The Southern Harmony and Musical Companion, seu segundo álbum, lançado em maio de 1992. Um dos pontos mais altos.

 

 

Até então

 

Shake Your Money Maker, o álbum de estreia, surpreendeu. Gravado em 1989 e divulgado no ano seguinte, em menos de dois anos ele havia vendido três milhões de unidades, puxado por músicas como “Hard to Handle”, “Jealous Again” e “Twice As Hard”.

 

A banda que registrou Shake Your Money Maker era formada pelos irmãos Chris e Rick Robinson (vocal e guitarra, respectivamente), Steve Gorman (bateria), Jeff Cease (guitarra) e Johnny Colt (baixo). O álbum é o resultado de uma transformação, pois até mesmo o nome The Black Crowes surgiu na época da sua produção.

 

Antes, o que havia se chamava Mr. Crowe’s Garden, banda iniciada pelos irmãos Robinson em Atlanta, Estados Unidos, em 1984. Pouco se sabe sobre a história dessa banda. A Wikipedia menciona influências do pop psicodélico dos anos 60 e do rock sulista, além da R.E.M., conterrâneos do estado da Geórgia.

 

Fã de R.E.M., Gorman integra-se a Crowe’s Garden em 1987. Um registro dessa época capta um quarteto fazendo um som bem diferente daquele que se ouviria em Shake Your Money Maker. Gorman publicou recentemente um livro contando a sua história com a banda, a principal fonte para meus comentários.

 

O grande incentivador da mudança foi George Drakoulias, que assistiu um show da Mr. Crowe’s Garden em Nova York em 1988. Ele pertencia ao staff da A&M, gravadora com a qual a banda tinha contatos, e gostou de ver o quarteto misturar em seus covers músicas do punk e do hard rock.

 

Drakoulias instigou a banda a se empapuçar de Rolling Stones. Na sua esteira, vieram Faces, Humble Pie, The Allman Brothers, juntando-se a influências já estabelecidas, como Aerosmith, Stooges, Van Halen e Nick Drake.

 

Ainda em 1988, entraria na banda o segundo guitarrista, Cease, reforçando as raízes sulistas. No ano seguinte, uma substituição ocorre no baixo com o ingresso de Colt, que até então tocava em uma banda semelhante a Bon Jovi.

 

Drakoulias reafirmou seu protagonismo durante a gravação de Shake Your Money Maker, do qual foi o produtor, agora vinculado à Def American. Interferiu no repertório e trabalhou bastante com os vocais de Chris. Drakoulias também indicou Pete Angelus como empresário e ele se tornaria o diretor dos vídeos da banda e de seus shows.

 

Foram mais de trezentas apresentações na sequência do lançamento do primeiro álbum, inclusive abrindo para Aerosmith, Robert Plant e ZZ Top. A banda participou da edição de 1991 do Monsters of Rock, dominado por estrelas do metal.

 

Mesmo fazendo sucesso, a Black Crowes cultivava o deslocamento: não tinha nada a ver com metal, mas estava nesse festival. Ecoando sons retrôs, ia cavando um espaço na cena do início dos anos 90.

 

 

O segundo álbum

 

The Southern Harmony and Musical Companion reflete o amadurecimento da banda seguindo os rumos do trabalho de estreia. Embora Drakoulias esteja novamente na produção, ela é dividida com a banda. Seu papel é menor e pode-se afirmar que o álbum resulta menos “guiado”.

 

Em uma apreciação econômica, bastaria rotular Shake Your Money Maker como “blues-rock”. Mantendo a mesma linha, Companion é mais floreado (no sentido que se associa ao flower power), mas também mais sujo (no sentido que se associa ao garage e ao punk).

 

Após ensaios na garagem da casa de Chris, as gravações ocorreram no Southern Tracks Studio em Atlanta em dezembro de 1991. Foram apenas cinco dias de gravação! Alguns elementos foram acrescentados e ajustados em Los Angeles, onde ficava a sede da Def American.

 

Cease não estava mais na banda e fora substituído por Marc Ford, guitarrista blueseiro, até então músico na Burning Tree. Os solos são um destaque em Companion, contribuição de Ford ao caldeirão flamejante de sons no álbum.

 

Desde inícios de 1991, um tecladista havia se integrado às apresentações da banda. O canadense Eddie Harsch, experiente em sons retrôs, oficializa sua entrada na Black Crowes com as gravações de Companion. Já trintão, ele colocou desafios para os garotos (os outros cinco estavam na faixa dos 25 anos), obrigando-os a aperfeiçoar suas habilidades.

 

Vale transcrever um trecho das memórias de Gorman sobre o álbum: “A mitologia do Southern Harmony é que estávamos todos bêbados e chapados e cercados por luzes de Natal e velas o tempo todo. Na verdade, estávamos (na maior parte do tempo) sóbrios e focados. Chris e Rich foram os motores criativos no que diz respeito à composição, mas a banda facilitou o trabalho deles.”

 

De fato, as composições são creditadas aos irmãos Robinson. O gogó de Chris é um dos grandes destaques, inclusive no seu papel de porta-voz da banda. Companion dá ampla vazão ao seu lado riponga, na época alimentado pela súbita admiração por Grateful Dead. Nos shows, ele desenvolve suas habilidades de entertainer evocando os trejeitos e movimentações de Robert Plant e Mick Jagger.

 

São dez músicas no álbum. Quatro delas foram lançadas em formato de single. Também quatro é o número de vídeos derivados de Companion. Três deles são compostos basicamente de imagens de shows (aí sim com muitas “luzes de Natal e velas”), refletindo sua boa fama como banda de palco.

 

Embora haja coesão no estilo e na sonoridade, Companion oscila entre o mais suave e o mais agressivo, entre o sublime e o vulgar. Assim também são suas letras e a imagem da capa, que mostra a banda (sem Harsch, que só aparece na foto da contracapa), tranquila, sobre um fundo que registra os efeitos da passagem de um tornado. Sobre a imagem, o nome do álbum, título de uma compilação de hinos religiosos do século 19.

 

“Sting me” abre muito bem o álbum. Arrede os móveis da sala para escutá-la. As vozes de Barbara Mitchell e Taj Harmon, que participam de várias músicas, imprimem um selo soul nesta e em outras faixas de Companion. “Remedy” tem um riff arrebatador, transportado de uma música da Parliament. Quando ele silencia, o lado groove da banda desponta. Juntando as letras de ambas as músicas, a somatória corresponde a certa androgenia cultivada no visual do vocalista.

 

“Thorn in my Pride” começa suave, destacando o teclado de Harsch, mas logo pega fogo com as guitarras tomando a frente. “Bad Luck Blue Eyes Goodbye”, essa sim uma balada-blues, é uma canção de despedida, e se ao ouvi-la uma forte languidez ou uma suave luxúria não se manifestarem, então bom sujeito você não é.

 

“Sometimes Salvation” se equilibra entre trechos com guitarras e bateria arrastadas e outros com tons e velocidades ascendentes. Esse equilíbrio descamba para um final catártico, os instrumentos em transe enquanto a voz implora: “Irmã, você vai tentar me encontrar?”

 

“Hotel Illness” é uma delícia, com uma gaitinha fazendo contraponto à guitarra, anunciando um refrão ao mesmo tempo melodioso e encorpado. É a música mais pop do álbum. Móveis a boa distância.

 

“Black Moon Creeping” mantém a gaita na introdução. O refrão, quase falado, é bem diferente das outras partes, que incluem uma excursão psicodélica e uma finalização blues-soul.

 

“No Speak No Slave” está entre as mais pesadas. Guitarras infernais, o vocal gritado. Como “Sometimes Salvation”, é uma música que você não encontraria no repertório dos Stones ou do Faces.

 

“My Morning Song”, a terceira das músicas que passam dos seis minutos de duração, sustenta-se em seus riffs largos e passes de slide guitar. Ela volta aos anos 70, mas termina com uma microfonia que remete a outras referências.

 

O álbum fecha com “Time Will Tell”, versão de música de Bob Marley. Em Shake Your Money Maker, o homenageado foi Otis Redding e sua “Hard to Handle”, cuja versão turbinada se tornou um dos sucessos do álbum. Em Companion, o resultado mantém a leveza da original, puxando para um blues acústico.

 

Vale buscar por faixas que acompanham os singles originados de Companion, tão interessantes quanto as que foram incluídas no álbum: “Words You Throw Away” e “Darling of the Underground Press”. Entre elas estão também outra versão para “Sting Me” e para “Jealous Guy” (Jonh Lennon) e “Rainy Day Women (No. 12 & 35)” (Bob Dylan).

 

 

Entre o grunge e o hard rock

 

Southern Harmony and Musical Companion atingiu o primeiro lugar na lista Billboard logo após seu lançamento. Sua tour, batizada de High as the Moon, terminou em meados de 1993 em festivais europeus, incluindo a apresentação como destaque em Glastonbury.

 

No entanto, as vendas não superaram as do álbum de estreia, cujos hits figuram até hoje na lista das faixas mais executadas da banda em plataformas de streaming. Talvez esse sucesso amargo, junto com os desencontros entre integrantes da banda, tenham pesado nos rumos futuros. O que não impediu que outros álbuns notáveis estejam em seu currículo, a começar com Amorica, a sequência de Companion.

 

Outra memória de Steve Gorman servirá de arremate para meu comentário. Em setembro de 1992, a Black Crowes participou do MTV Music Awards, quando tocaram “Remedy”. Gorman se expressa em nome da banda: “Todos nós percebemos claramente que, embora pudéssemos pensar que éramos a melhor banda de rock do mundo, Guns n’ Roses e Nirvana eram as principais atrações.”

 

Bandas como Guns n’ Roses e Nirvana funcionavam como marcos em dois sentidos: coisas de que precisavam estabelecer distância e coisas que serviam de parâmetro. Quando se trata de fazer contrastes, precisa haver um reconhecimento prévio do que se diferenciar.

 

Indicações de que o setentismo do Black Crowes habitava o mesmo mundo do grunge e do hard rock versão 90s? Antes de ingressar na banda de Atlanta, Marc Ford havia sido convidado para se juntar aos Guns n’ Roses. Brendan O’Brien, engenheiro dos dois primeiros álbuns dos corvos, se tornaria célebre por seu trabalho como produtor da Pearl Jam.

 

Esses vasos comunicantes ecoavam na sonoridade da banda, especialmente em Companion: um música bastante aparentada ao hard rock, mas deixando espaços por onde entram timbres e pegadas que dialogavam com o grunge.

 

Sobre um ponto, contudo, não há discussão: as bases blueseiras da Black Crowes. Embora essas bases façam parte das raízes da música sulista encarnada pelo sexteto, a principal carniça foram mesmo as referências britânicas da passagem das décadas 60 e 70. Um tanto embranquecidas, as fontes que alimentavam o viveiro vinham da música negra. Seria essa a razão da redundância no nome da banda?

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *