Terá Peggy Gou criado o K-House?

 

 

 

 

Peggy Gou – I Hear You
40′, 12 faixas
(XL)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

 

Se você esteve no planeta neste último ano, certamente ouviu “(It Goes Like) Nanana” em algum lugar. Pode ter sido de forma involuntária, pode ter sido por intermédio de algum tchóvem, mas o fato que é a faixa da DJ e produtora coreana Peggy Gou, “went viral” como dizem as publicações gringas sobre música e tecnologia nos tempos atuais. E isso não é um sinal de que a música era “boba” ou “fácil”, mas que tinha o talhe perfeito para grudar imediatamente nas mentes dos ouvintes e que, sim, era dotada de uma acessibilidade – que muitos podem confundir com o termo “fácil” – que desperta várias lembranças nos mais velhos e incita fofuras nos mais novos. Boa música pop é assim, uma montanha russa de clichês arrumados de uma forma original, bem pensados e estrategicamente escolhidos. E Peggy, natural de Seul, mas dona de uma trajetória respeitável nas noites musicais de Berlim ao longo dos anos, definitivamente entende do assunto e tem as manhas necessárias para, mais que um hit planetário, criar um disco inteiro que se sustenta e apresenta vários momentos legais. Seria, portanto, este ótimo “I Hear You” o marco-zero do … K-House?

 

Talvez não, mas o termo é ótimo. O fato é que a dance music que Peggy oferece é, sim, totalmente inspirada nos anos 1990, em várias nuances e tipos. E do house, na verdade, não há muito, apenas o uso daqueles pianos martelados mais como adereços e boas sacadas de arranjo e não como elementos estruturais. E há, além da dance music noventista, um uso ostensivo do bom pop daquele tempo, fluido, bem produzido e bem pensado. O grande encanto da música de Peggy vem de suas estruturas simples, elegantes e sofisticadas, aliadas à habilidade de criar uma nostalgia convincente e emocionante. Todas as faixas têm refrões marcantes e melodias fáceis de grudar. Destaques do álbum são verdadeiros sucessos instantâneos, que a DJ veio construindo nos últimos anos, lançando em forma de single e, agora, aglutinando no álbum e tornando-o um artefato altamente contagiante.

 

Do ano passado, a inevitável e já mencionada “(It Goes Like) Nanana” se consagra como hit dançante de 2023/24, construída a partir de sintetizadores em alta velocidade, toques de piano house-vintage e um sample da canção “9 PM (Till I Come)” do DJ alemão ATB. Em “I Believe in Love Again”, Peggy descola uma inusitada colaboração com o seu ídolo de infância, Lenny Kravitz, que empresta sua voz maviosa e sua guitarra versátil para dar forma a uma levada techno-funk-pop totalmente bacana. Outro destaque inegável é a ótima “Lobster Telephone”, inspirada na escultura surrealista de Salvador Dalí. Funky e inusitada, a canção tem boas linhas de baixo e exotismo no uso de teclados emulando sons de vibrafones. Mas, quando pensamos que estamos apenas diante de uma exibição de fluência em sons e posturas de cerca de trinta anos atrás, Peggy saca da cartola uma lindeza chamada “Seoulsi Peggygou (서울시페기구)”, faixa surpreendente que combina drum & bass frenético com o elegante gayageum (instrumento tradicional de cordas coreano) e avisa que tem garrafas vazias de sobra para vender.

 

A releitura do poema “Your planet seen from within” de Olafur Eliasson, dà forma à faixa de abertura “Your Art”, quase resvalando num blá-blá-blá coach-gratiluz, mas escapando pela tangente. O mesmo Eliasson também assina o design dos headphones usados por Gou na capa do álbum. “All That” surpreende com batidas hip-hop e samples de “Turn Me On” de Kevin Lyttle, suscitando um clima descontraído de bar hispânico com a participação da rapper Villano Antillano, de quem eu jamais ouvira falar até aqui. É bacana, mas inferior, por exemplo, à penúltima faixa, “Purple Horizon”, que mergulha em sonoridades dub com toques obscuros, com teclados que vão criando climas meio fantasmagóricos. “I Go” (de 2021), com uma inspiração forte de eurodance, diz a lenda, foi escrita a partir de uma mensagem motivacional no espelho do banheiro, mostra o quanto Peggy tem talento como produtora. Fechando os trabalhos, outra belezura: “1+1=11”.

 

Se este álbum irá iniciar um suposto movimento K-House, não dá pra dizer. O que podemos comprovar é que “I Hear You” é uma boa estreia de Peggy Gou e presta uma sincera homenagem à dance music de sua juventude, sem medo e com momentos bem legais. Ficaremos de olho.

 

Ouça primeiro: “It Goes Like (Nanana)”, “Seoulsi Peggygou”, “Purple Horizon”, “1+1 = 11”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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