Com Antonio Cicero a gente fez um país

 

 

Hoje amanheci muito triste por conta da morte de Antonio Cicero. Era alguém que eu admirava bastante e já digo que o considero em pé de igualdade com dois outros letristas famosos de sua geração – Renato Russo e Cazuza. E acho Cicero mais sensível e literato que os dois. Ainda que este início possa indicar, este não é um texto polêmico e nem desejo que seja um obituário. É apenas uma reflexão inocente da permanência das pessoas e das coisas e de como isso acontece de várias formas. Cicero era filósofo, escritor, poeta, letrista. Seus escritos foram publicados como livros e ensaios mas ganharam o país como letras de algumas canções-chave para o entendimento de um momento muito importante da cultura nacional – os anos 1980. Filho de intelectuais, irmão de cantora, Cicero era apaixonado, sobretudo, pela Filosofia. Podemos dizer que era seu ofício primordial, mas, se olharmos bem, é extremamente contraditório – e doloroso – que alguém seja filósofo e poeta em medidas iguais. Um racional, outro emocional existindo na mesma pessoa. Cérebro e coração se confundindo na anatomia. Talvez esse fosse seu maior segredo, exposto aos olhos de todos.

 

Algumas letras de Cícero são extremamente importantes para mim e o são de um jeito discreto, como ele. Figura tímida, passava despercebido pelo silêncio e delicadeza, mas, de algum jeito comunicava a todos o que era absolutamente necessário que soubessem. Me considero um privilegiado geográfico por ter ido e vindo do Leblon, bairro da Zona Sul do Rio, no qual Cicero residiu por bom tempo, e poder olhar para as luzes do Hotel Marina, para o farol da ilha e demais marcos físicos listados  pela letra da canção “Virgem”, faixa-título do álbum de 1987 de Marina Lima. Ou sentir o seu “inverno quase glacial”, mencionado em “Inverno”, parceria com Adriana Calcanhotto, registrada em seu álbum de 1994, “A Fábrica do Poema”. Cicero era um autor complexo, mas parecia sempre refletir sobre o que fazemos das nossas vidas enquanto a temos. Seu gesto derradeiro indica o quanto valorizada nosso livre arbítrio e mostra o quão poderosos somos diante da pior adversidade, caso tenhamos controle sobre nós mesmos.

 

De uma forma mais suave, porém igualmente forte, ele dissertou sobre essa questão em vários momentos de sua carreira. No poema “Meio-Fio”, que faz parte de seu livro “Porventura”, ele conta um pequeno acidente de trânsito perto do Cinema Roxy, em Copacabana e como foi possível escapar de vários níveis de dor de cabeça e aborrecimento simplesmente indo de encontro ao mar de Copacabana, que ficava – ainda fica – a dois quarteirões do velho cinema, hoje aviltado como casa de espetáculos para incautos. Novamente senti o privilégio de compartilhar o referencial geográfico, visto que andei por décadas da minha vida pelas ruas Barão de Ipanema e Bolívar, esquina com Avenida Nossa Senhora de Copacabana, indo ao cinema, comprando discos na velha Copadisco, enfim, habitando o mesmo tempo e espaço que o poeta. Certamente essa perspectiva e esse conhecimento me dão algum privilégio, mas me fazem sentir uma dor mais aguda por sua perda.

 

Porque é uma batalha que iremos perder a da vida e da morte. O fim da existência é algo terrível e somos incapazes de contornar. Cicero, através de sua decisão de praticar a eutanásia por conta do avanço do Mal de Alzheimer, doença que deteriora justamente as faculdades mentais a níveis irreversíveis, deu um brado forte contra a ordem das coisas. Ele ponderou o imponderável, se apropriou de seu destino, exercendo este poder terrível. Desmistificou o que havia de mistério nisso e o fez como quem escreve “iluminar a vida já que a morte cai do azul”. Foi o que ele fez. De imortal da Academia Brasileira de Letras (desde 2017), para imortal de fato.

 

Cicero teve poemas musicados por vários parceiros e gravados por muita gente.  Gal, Caetano, Bethania, Zizi Possi, muita gente. Caso queiram – nunca é tarde – alguns álbuns são importantes para entender a excelência de sua poesia. A discografia de Marina é o início óbvio dessa busca. “Fullgás”, “Charme do Mundo”, “Pra Começar”, “À Francesa”, “Acontecimentos”, “Virgem”, todas são canções clássicas com letras dele. Também há um tanto de outras composições menos conhecidas. “Deve Ser Assim”, do álbum “O Chamado”, é uma das minhas mais queridas. “Zona de Fronteira”, álbum de 1991 de João Bosco, é composto apenas por parcerias de Cicero com Waly Salomão. Adriana Calcanhotto também registrou várias colaborações vitoriosas com o poeta, com destaque absoluto para a já mencionada “Inverno”, além de joias como “Maresia”, “Bagatelas”, “Asas”, “Três”. Também teve a intensa “O Lado Quente do Ser” registrada não só por Marina em “Certos Acordes”, mas por Maria Bethania em seu álbum “Talismã”, ambos de 1981. E era de Cicero a letra de “O Último Romântico”, uma das canções mais conhecidas da década de 1980, estandarte da carreira de Lulu Santos.

 

A sensação que fica é ambígua. A perda, irreparável. O legado, eterno. O coração e o cérebro, confusos na anatomia de quem fica.

 

 

A carta de despedida:

 

 

Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *