Style Council, melhor que The Jam?

 

Paul Weller é um gênio. Talvez ele seja o mais talentoso músico britânico de uma geração que teve Joe Strummer e Mick Jones, entre outros. Fã de black music, sujeito engajado e politizado, votante tradicional do Partido Trabalhista Inglês, socialista de primeira hora, Weller ficou conhecido por ser o cérebro do mais musical dos grupos punk, o The Jam. E ficou ainda mais conhecido quando, em 1983, decidiu encerrar as atividades da banda e partir para um projeto arrojado e desafiador, o Style Council. Era uma música extremamente politizada e “subversiva”, disfarçada sob um manto do mais bem elaborado pastiche de jazz-pop, com tonalidades de Bossa Nova e soul.

 

Digo isso porque, em meio aos lançamentos deste mês de outubro de 2020, o que eu mais aguardava era “Long Hot Summers – The Story Of The Style Council”, uma coletânea dupla, com 37 faixas, trazendo os maiores sucessos do grupo e algumas preciosidades, como versões alternativas de clássicos e alguns remixes, tudo devidamente escolhido pelo próprio Paul Weller. Sendo assim, decidi trazer de volta este texto que fiz para o Monkeybuzz em outubro de 2014, no qual falo desta transição na carreira do Modfather. E aqui embaixo deixo o acesso para ouvir a novíssima coletânea do Style Council, lançada ontem. Boa viagem.

 

 

 

Pense que você montou uma grande banda de rock aos 17 anos. Fez sucesso com canções que transformaram-se em hinos e tornou-se um rockstar de prestígio internacional. Agora, sete anos e seis discos depois, você, simplesmente, quer tocar a música que gosta, que não é a mesma de antes. Você se interessou por soul music, por r&b, por funk e o formato de canção que você compôs durante este tempo não é mais o bastante para suas ambições. O que fazer? Chuta o passado e vai fazer o que gosta? Abre mão das suas vontades e fica parado, criando limo, como querem gravadora, fãs e todo mundo? Se você é Paul Weller em 1982, a resposta é simples: romper com o passado é a única opção.

 

Weller é um ícone da música pop planetária. É um discreto, mas relevante personagem de um período que muito julgam ser de conhecimento total, mas que guarda informações claras apenas para quem é inglês e viveu aquele fim de década de 1970. Simples entender o motivo dessa dificuldade de compreensão, pelo menos por parte de brasileiros que parecem entendidos em tudo: nunca experimentamos um momento de tanta falta de perspectiva como o que a Inglaterra viveu naquele 1979, quando Thatcher assumiu o poder, representando o Partido Conservador Inglês. Pela legenda já é possível compreender que o governo da Dama de Ferro não seria dos mais arejados e ela – para usar uma expressão coloquial bastante simpática – caiu matando em cima dos trabalhadores, dos rebeldes irlandeses do norte, dos jovens, de tudo o que significava uma certa liberdade, ou ainda, uma simpatia ao chamado Welfare State, aquela variável simpática de capitalismo, na qual o estado é bastante presente na vida social, sobretudo na concessão de salvaguardas contra a espoliação total. Coisas como aposentadoria, atendimento médico gratuito, indenizações etc.

 

 

O artigo não é sobre Thatcher mas sua presença fez com que a música jovem alternativa da época, o punk rock, se transformasse em algo mais plural, ganhando uma conotação de resistência, bem mais que o protesto puro e simples que vinha antes. Dessa evolução vieram, por exemplo, o fim do Sex Pistols (1980) e London Calling (1979), terceiro disco do Clash, dois lados de uma mesma moeda musical. Weller tinha sua bela banda numa espécie de terceira via, o valoroso e brejeiro The Jam, ao lado de seus amigos Bruce Foxton e Rick Buckler. Weller já vinha demonstrando interesse em música e cultura pop made in USA, juntamente com algum desejo espontâneo de apreciar boas roupas, bons quadros, boa comida, enfim, algo que ele aprendera a valorizar e gostar. Além disso, essa convergência de interesses, apesar de estranha a princípio, era própria de um pessoal a quem Weller, de certa forma, passara a representar naqueles tempos: os mods. Os tempos, no entanto, eram outros. Um desgaste natural surgiria entre o trio, culminando com a saída de Paul no fim de 1982, após o lançamento de The Gift, último disco de inéditas da banda.

 

A tal resistência contra uma opressão diferente, que significava o alinhamento da Inglaterra de Thatcher com a política neoliberal posta em prática pelo governo de Ronald Reagan, jogou a velha ilha no mundo dos yuppies dos anos 80, logo com uma inusitada guerra contra a Argentina pela posse das Ilhas Malvinas. Weller já era um jovem e antenado socialista naquela época, mas desvinculado do opositor óbvio dos conservadores, no caso, os trabalhadores. Decidiu levar adiante sua ideia de mergulho na música americana e flerte com manifestações mais descoladas de arte e comportamento. Reencontrou um companheiro de estúdios, o tecladista Mick Talbot, que havia participado de algumas canções no penúltimo disco do Jam, Sound Affects (1980), além de ter integrado formações de Dexy’s Midnight Runners e Merton Parkas e o convidou para um novo projeto.

 

 

A ideia era montar um núcleo criativo, no qual a paixão da dupla por música negra americana poderia ser levada às últimas consequências, sendo que haveria espaço para as canções pop politizadas de Weller e para arroubos jazzísticos de Talbot, que aceitou sem pensar duas vezes. Nascia o Style Council, uma das grandes bandas inglesas da década de 1980. Sua importância pode ser medida em vários âmbitos, seja a coragem de Weller em mandar o Jam para bem longe e cair de boca num projeto absolutamente novo, seja na audácia estética de flertar com ritmos como o jazz e o soul em plenos anos 80 ou ainda, embarcar numa tour de force por ícones europeus de bom gosto estético, cosmético, pictórico enquanto entoava canções com títulos simpáticos como Dropping Bombs on the White House, que se alternavam com doces declarações pessoais (My Ever Changing Moods) ou sentimentais (You’re The Best Thing).

 

O primeiro disco do Style Council, Cafe Bleu, veio à luz em março de 1984, após alguns singles e um EP, lançado em lugares como Japão ou Holanda. A paleta sonora da dupla, devidamente encorpada pelas presenças do baterista Steve White e da cantora Dee C.Lee, trazia uma variedade impensável de ritmos. Talbot e Weller davam entrevistas sobre como ser socialista, vegetariano, usar boas roupas e sapatos caros, além de entrar em sintonia com pensadores modernistas e descolados. O mais assustador disso tudo era a absoluta falta de precupação por parte de Weller, cujo nome estava na linha de frente do Council, em relação a um provável fracasso comercial, independente de seu talento. Se, por um lado, o Style Council permitiu uma importante oxigenação no pop inglês, resultando em bandas sensacionais como Everything But The Girl, Matt Bianco, Sade, Aztec Camera, entre outras, também trouxe grandes riscos. Das treze canções de Our Favorite Shop, apenas seis traziam a voz de Paul, sendo as restantes instrumentais. Em meio a todo o arcabouço ideológico e estético, Weller estava se divertindo como nunca. Ele simplesmente renunciara ao posto de porta-voz de uma geração de punks para assumir uma persona que foi definida numa remota edição da revista Bizz como “o yuppie mais escroto do sistema solar”.

 

 

Claro, muitos não perdoaram sua atitude até hoje mas é impossível não apreciar a obra que ele ergueu à frente do Style Council. O disco seguinte, Our Favorite Shop, foi lançado no ano seguinte e foi precedido pelo grande sucesso Shout To The Top, que emplacou a banda no Brasil. Outra grande canção, With Everything To Lose, veio em seguida e consolidou a excelente forma de Weller, levando a banda a gravar seu primeiro registro ao vivo, chamado Home And Abroad, em 1986.

 

À medida que a década de 1980 foi passando, a proposta do Style Council perdeu em ousadia e sentido. É possível perceber grandes canções em toda a discografia da banda, mas é notável uma queda nos níveis de inspiração a partir de seu quarto disco, The Cost Of Loving, lançado em janeiro de 1987, sendo seguido por Confessions Of A Pop Group, do ano seguinte. Um novo disco foi gravado e entregue pela dupla em 1990, Modernism: A New Decade, no qual a banda adentrava o terreno da house music. O trabalho foi recusado pela Polydor, o que antecipou o fim do Style Council, no mesmo ano. Em 1991, Paul Weller iniciava sua aguardada carreira solo, lançando um disco homônimo, no qual voltava ao rock, devidamente amplificado pelas influências processadas pelo Council ao longo dos últimos oito anos.

 

Com seis discos no catálogo e uma abordagem peculiar de muitos referenciais, o Style Council é, antes de mais nada, um intervalo proposto por um grande artista na indesejada missão de trazer respostas para questões de uma geração de ouvintes. Se a atitude de Paul Weller pode parecer egoísta ao encerrar as atividades do Jam, também é libertadora e ousada, algo que ignorou consequências em pleno florescimento da lógica mercantil na música pop, de uma maneira, digamos, mais definitiva. Nem precisava ter composto canções tão legais em discos tão bem feitos.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *