Stênio Gardel e “A Palavra Que Resta”

 

 

Há algumas semanas um menino de 11 anos de Campinas foi atacado no grupo do Whatsapp de sua escola porque propôs que fizessem um trabalho sobre o mês do orgulho LGBTQIA+. Como se não bastasse a horror perpetrado por alguns de seus colegas e respectivos pais, a própria coordenadora tentou coagi-lo por telefone a se retratar pela ideia. A “educadora” só não teve mais tempo de destilar seu despreparo porque a irmã do menino a interrompeu.

 

Sou professora de crianças da mesma idade, tia, e horrorizada com o print do ataque no grupo imaginei algum aluno ou até minhas sobrinhas e sobrinho passando pelo mesmo terror. Além disso, foi impossível não pensar em Raimundo Gaudêncio, personagem principal do delicado livro de estreia de Stênio Gardel, A palavra que resta, editado pela Companhia das Letras.

 

Há mais de 50 anos Raimundo carrega consigo uma carta escrita por Cícero, seu grande amor, e jamais permitiu que ninguém a abrisse e contasse para ele o que seu querido lhe deixou quando foram obrigados a se separar, mesmo que não soubesse ler, obstáculo que decide transpor aos 71 anos tornando-se aluno da professora do nome fácil de colocar no papel, Ana.

 

 

“Raimundo Gaudêncio de Freitas, traço incerto, arredio ao toque do papel. Lápis danado, domado, e ele escrevia o nome completo pela primeira vez. Setenta e um anos e essa invenção, como ele diz, de aprender a ler depois de velho”

 

Raimundo e Cícero viviam o amor de se encontrar no peito e no corpo um do outro até serem expulsos do seu abrigo pelo preconceito de suas famílias. Raimundo amarga toda as surras do pai que suas costas podem aguentar enquanto se desespera por não saber notícias de Cícero, conta somente com o apoio da irmã Marcinha e se entristece com o horror no rosto de sua mãe.

 

“- Pois eu acho que tu devia ir embora, pra longe, porque depois do que tu fez tu não pode mais ficar aqui não. A voz que afaga, a voz que afoga “

 

Silenciado, ele sai da zona rural em direção à cidade e encontra em Suzzany, uma travesti e um dos personagens mais interessantes a cruzar seu caminho, a amiga que acolhe a identidade que lhe havia sido imposta como suja, imoral, não sem antes se enfrentarem em um embate que transborda dor e a violência da exclusão.

 

Quando ferida ela olha para o mundo que a estranha e agride certa de que seu existir importa e assim ela o ensina a Raimundo, calejado por anos lutando com a palavra que quer deixar seu corpo e contar sobre o seu amor e o homem que ele é de verdade.

 

“ -É muita falta, um cafuçu desse! Fique sabendo que eu ando assim de dia também, e o que eu faço com meu corpo, desde quando é da tua conta? Pois, meu filho, eu quero é ver tu ter coragem de fazer o que eu faço, tua coragem tu acha só ali, ó, da porta pra dentro do cinema. Da porta pra fora, o que que tu acha?

 

Está aí na sua cara!

 

Não há como ler A palavra que resta sem pensar em quantos e quantas Raimundos podem ter passado pelos nossos dias, nossa convivência, obrigados e obrigadas a se esconder, a se calarem, a esconderem no peito e nas escolhas obrigadas amores dilacerados por uma parte da sociedade que ainda se vê no direito de impor seus prejulgamentos, não importa quantas vidas eles sejam capazes de desarranjar.

 

Stênio escreveu uma história repleta de linguajar poético e de fluência oral que não tira dela a tristeza e o peso da realidade. Todos os capítulos do livro têm como título apenas uma palavra como Costela, Rio, Nome, o que mostra o poder que um conjunto de consoantes e vogais tem de transformar, de validar sentimentos e posição no mundo, como a que Raimundo busca ao finalmente se tornar um estudante.

 

“Tinha que ser a última vez que eu ficava daquele jeito. A carta fechada nas mãos e a decisão pendurada na cabeça. Levantei a aba do envelope e tirei a folha de dentro. Ela sentiu o vento e o sol que batia na janela”

 

Estudante como o menino que com uma fala de empatia, de olhar para a sociedade em que está inserido incomodou quem diz fazer da educação sua bandeira, mas desrespeita a levantada por pessoas que precisam ter a sua vida legitimada. Que ele não desista de suas palavras quando elas forem um instrumento para dar voz a quem só quer ter o direito de existir e gostar em paz.

 

Nunca precisamos tanto delas para não deixar que o que nos reste seja apenas desamor.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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