Somos Cacique de Ramos, somos Alessandra Negrini
Nos tempos atuais, o Carnaval se tornou uma trincheira de discursos, disputas e interesses. A festa popular ganhou conotação de resistência, diante do que vivemos no Brasil desde 2016, especialmente por atender à demanda de manifestações e expressões livres da chancela da mídia hegemônica nacional, ainda que esta, infelizmente, exerça forte papel na filtragem de informações e detalhes mais espontâneos. Mesmo assim, falar no Carnaval hoje em dia é se manifestar. Os tempos que vivemos são tão confusos e estranhos, que a mais nova polêmica é a crítica aos foliões que se vestem de … índios. E de negros. E de qualquer outra coisa que não seja … eles mesmos.
Essa burrice surgiu quando a atriz Alessandra Negrini, do alto de seus inacreditáveis quase 50 anos, surgiu, num desfile pré-carnavalesco em São Paulo, vestida de índia. Foi atacada por um monte de comentários que a acusavam de usar adereços sem, digamos, legitimidade. Afinal de contas, oras, Negrini não é índia, certo? A questão é tão inacreditável que não parou por aí. O tradicional bloco carioca Cacique de Ramos, uma instituição tradicional do Carnaval com mais de 60 anos de fundação, foi atacada por … ter os índios como motivo principal de nome, criação e, sim, fantasias. Não adiantou explicar – como fez o historiador Luiz Antônio Simas – que as fantasias são de índios norte-americanos, apaches, porque o bloco é tão antigo que queria homenagear os velhos filmes de bangue-bangue. A crítica e a censura veio mesmo assim.
E quem está criticando? É a direita? É o burrismo do Planalto? É a Regina Duarte? É algum filho do burrista-chefe? É o ministro que não quer ver empregadas domésticas com poder de compra? Não, gente, é a própria “esquerda”, que se convencionou chamar de … cirandeira. É aquela facção nova e exacerbada das forças progressistas que não se importa em ver os direitos dos trabalhadores reduzidos, mas acha valioso criticar a fantasia do Carnaval. Sim, eles mesmos.
Quando leio sobre esse pessoal, sinto mais saudade de Leonel Brizola, o político que mais admirei na História do Brasil. Mais que Vargas, mais que Lula. Brizola era, acima de tudo, inteligente. Sabia que o jogo político se joga com malandragem e perspicácia. Por isso era chamado por muita gente da própria esquerda de “caudilho”, um termo depreciativo, referente aos fazendeiros gaúchos. Brizola não deixaria tal questão sobre os índios extrapolar as esferas internas. Se a mídia desse espaço – como está dando – ele surgiria para argumentar e dar uma opinião contundente que, se não encerrasse o assunto, esvaziaria a discussão.
A questão é: as forças progressistas brasileiras, cirandeiras, trabalhistas, socialistas, social-democratas, esquerdistas, anarquistas, canhotas, seja o que for, precisam se unir. Não deveria ser uma tarefa difícil, uma vez que o país vive seu pior momento em toda a história. Temos o garrote da mídia hegemônica, que não se importa em ser destratada pelo burrista-chefe-presidente, que serve a quem está no poder. Temos o achatamento salarial, a inflação, o desemprego, a falta d’água, os telepastores evangélicos grassando, o país afundando na opinião pública internacional, o meio ambiente sofrendo ataques inéditos, os entregadores de comida e os vendedores de quentinha se multiplicando exponencialmente…são vários focos de discussão. Implicar com as tradicionais fantasias de índios no Carnaval, certamente não é uma prioridade de discussão.
Sabemos que sociedade precisa mudar e atualizar seus costumes, mas isso acontece com conversa, diálogo, entendimento. No mais, é de se sugerir que os críticos, tão importados com os índios, vão até as reservas – em vias de desaparecer sob o burrismo minerador e exploratório – para defendê-las e aos índios.
Pra encerrar este texto, transcrevo abaixo – e linko em seguida – a nota oficial da APIB, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, expedida ontem.
“Estamos vivendo a maior ofensiva em séculos de nossa história. Essa semana está tramitando no Congresso uma MP que tenta regularizar a grilagem, o PL da Devastação quer impor a mineração e a exploração das terras indígenas, um evangélico missionário está em um posto estratégico da FUNAI e pode provocar a extinção de povos não contactados. São muitos os ataques. Não nos esqueçamos, o momento é grave e dramático, querem nos dizimar!
Por isso, reafirmamos que o momento é de união entre todos, e não atacar uma aliada por se juntar a nós em um protesto. Alessandra Negrini colocou seu corpo e sua voz a serviço de uma das causas mais urgentes. Fez uso de uma pintura feita por um artista indígena para visibilizar o nosso movimento. Sua construção foi cuidadosa e permanentemente dialógica, compreendendo que a luta indígena é coletiva.
É preciso que façamos a discussão sobre apropriação cultural com responsabilidade, diferenciando quem quer se apropriar de fato das nossas culturas, ou ridiculariza-las, daqueles que colocam seu legado artístico e político à disposição da luta. Alessandra Negrini é ativista, além de artista, e faz parte do Movimento 342 Artes, que muito vem contribuindo com o movimento indígena. Esteve conosco em momentos fundamentais. Portanto, ela conta com o nosso respeito e agradecimento. E assim será, sempre quem estiver ao nosso lado.”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Disse tudo é mais um pouco!!!