São Patrício e a pandemia

 

 

Ontem chegamos ao inacreditável número de 3149 mortes por covid-19 em 24 horas no Brasil. Já são mais de 282 mil vítimas da doença, levando o nosso país a contabilizar mais mortos nesta pandemia do que em toda a história, por exemplo, da luta contra a AIDS. Desde ontem, 28% dos mortos no mundo, por conta da covid-19, são brasileiros, sendo que, nosso país representa apenas 3% da população absoluta do planeta. Ou seja, é um extermínio de pessoas a céu aberto, diante da bateção de cabeça e da negligência do “governo”.

 

Mas ontem também foi dia de São Patrício, o padroeiro da … Irlanda. E muita gente estava triste aqui no Brasil, porque não poderia comemorar a data bebendo a tradicional cerveja verde e ouvindo música celta num pub qualquer em algum lugar aqui de Pindorama. Interessante.

 

Ainda que seja extremamente louvável o sentimento de respeito às normas de isolamento social por conta da covid-19, o desejo de comemorar esta data me deixou com as orelhas em pé e nem é porque a tradição de São Patrício seja totalmente estranha ao nosso próprio nicho de santos católicos. A vida e a história dele ocorreram no eixo Inglaterra-Irlanda e foi marcada por uma trajetória de superação, na qual ele foi sequestrado por piratas irlandeses, sendo levado para lá e obrigado a viver entre os locais,  na primeira metade do século 5 d.C. Depois ele se libertou, abraçou o sacerdócio e voltou para a Irlanda como padre, sendo responsável pela catequese dos celtas pagãos que habitavam a ilha, levando o país a abraçar o cristianismo romano. Lembrem-se: os romanos conquistaram toda a Europa Ocidental, chegando à Inglaterra e, a partir da adesão religiosa, à Irlanda.

 

Sempre que a gente vê palavras como “catequese” ou “evangelização”, estamos diante de adesão forçada a uma religião estranha. É uma dominação cultural, uma imposição. É mais ou menos o que aconteceu aqui no Brasil com os índios e os jesuítas, cuja Companhia de Jesus teve sua fundação na França, justo para levar a fé católica para outros lugares do mundo, como o extremo oriente e o Brasil. Ou como o “conquistador” espanhol hernan cortez, que chegou às terras do Peru e acabou tornando-se um dos maiores genocidas da humanidade, responsável pelo extermínio de milhões de nativos incas. Não por acaso, ele foi “homenageado” por Neil Young na canção “Cortez, The Killer”, que impediu que o roqueiro canadense entrasse na Espanha por um bom tempo.

 

Não se trata de “Halloween é o cacete”, porque nem estou levantando a bola de que esta tradição nos é totalmente alheia. O Brasil é um país que foi colonizado, recebeu vários fluxos de imigrantes, pode e deve ter suas tradições de todos os tipos, mas, sei lá, talvez seja conveniente explicar alguns detalhes.

 

Sobre santos católicos, mesmo não sendo a minha religião, não posso deixar de ter simpatia por pessoas como São Francisco de Assis, que renunciou a todo tipo de riqueza para defender os mais pobres, num movimento de tentativa de trazer a Igreja Católica para mais perto dos necessitados, quando ela estava de braços dados com os muito mais ricos. Ou de Santo Agostinho, filósofo, estudioso. Ou de Nossa Senhora da Aparecida, padroeira do Brasil.

 

No mais: celebrar gente que catequizou é sempre complicado porque o termo pode ter sentidos e significados muito distantes do “entendimento”  ou da “comunhão” que ele abriga quando é dito por pessoas que não revelam todo seu contexto.

 

Eu, por mim, não celebraria cortez ou, sei lá, josé de anchieta. Nem que fosse apenas para encher a cara de cerveja mas aqui eu falo só por mim.

 

Em tempo: tenho uma amiga muito querida que mora em Dublin, capital da Irlanda. Lá o auxílio emergencial é de 1500 euros – cerca de 9000 reais – e não foi interrompido desde o ano passado. O povo respeita o isolamento social, ainda que esteja de saco cheio.

 

Em tempo II – a celebração que surge copiada em outros países estranhos ao mundo anglo-saxão se deve ao festejo americano, que funcionou, especialmente no século 19, para que imigrantes irlandeses celebrassem suas origens católicas numa terra nova.

 

Já pensou se a gente aproveitasse o dia de São Patrício pra exigir as mesmas condições para o Brasil?  Fica a dica, pessoal.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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