Rolling Stones desafiam o tempo transcorrido
The Rolling Stones – Hackney Diamonds
48′, 12 faixas
(Polydor)
Com mais de sessenta anos de história e existência, há tempos os Rolling Stones se transformaram numa entidade mítica que não cabe apenas nos seres humanos que a compõem. Tanta gente veio e foi da banda, tantos álbuns já feitos – ótimos, bons, médios e ruins – tantas canções já foram gravadas em estúdio, ao vivo, tantas colaborações, produções, enfim… Não dá pra reduzir o sentido e o tamanho do grupo aos três sobreviventes – Mick Jagger, Keith Richards e Ron Wood. A cada disco, os Stones estão diferentes, transformados e poder olhar para isso em retrospecto, com o conforto do tempo, é um privilégio para nós. Também está nesta categoria o simples fato destes senhores, que poderiam ser nossos pais, avós, bisavós e, simplesmente, estar descansando indefinidamente, ainda terem fome de bola a ponto de desejar subir no palco e, mais que tudo, gravar e compor novas canções. Sendo assim, “Hackney Diamonds” é um desses álbuns raríssimos, compostos e lançados por artistas que estão aí há muito tempo, já viram de tudo e que, constantemente transformados, seguem vivos sem criar limo. Neste mesmo time estão Bob Dylan, Paul McCartney, The Who, Neil Young… Quem mais?
Não só uma entidade, os Stones são uma empresa muito bem sucedida. “Hackney Diamonds”, o novo álbum, foi produzido por Andrew Watt, que assinou álbuns de veteranos como Iggy Pop, Paul McCartney e Ozzy Osborne com a visão e a contemporaneidade de quem já produziu Miley Cyrus, Justin Bieber, Dua Lipa, entre outros. Ou seja, a banda tem este desejo perene de nunca soar estática. Mesmo que sua assinatura sonora sobreviva ao apocalipse, os Stones sabem que o tempo passa e querem soar urgentes. Às vezes este tiro sai pela culatra, como, por exemplo, em “Dirty Work”, álbum de 1986, que soava esquisito em seu tempo, mas que, décadas depois, tornou-se um interessante souvenir de ousadia. Em “Hackney” não há contemporaneidade vazia, pelo contrário. O trabalho de Andrew Watt é de colocar a força do trio a favor da ótima safra de canções que lhe foi apresentada logo no início dos trabalhos. Sendo assim, com uma mixagem moderníssima e muito eficaz, os sons do álbum estão por todo o espectro dos fones de ouvido e envolvem até a alma. Mais que isso – há uma modernidade inequívoca na capa – que me parece feia, mas tudo bem – e no próprio espírito das faixas como um todo. Em geral, elas meio que se completam com caos, doçura, energia e perplexidade diante do mundo, dos anos, de todos.
Se Watt fez um bom trabalho na pilotagem do estúdio, os músicos fizeram muito mais. Além de Mick, Keith e Ron, o álbum tem algumas características que o tornam único. A primeira delas é que se trata do primeiro lançamento dos Stones sem seu baterista-fundador, Charlie Watts. Eu confesso que senti muito sua falta quando o primeiro single, “Angry”, veio ao mundo, ainda que Steve Jordan, integrante da banda solo de Keith, os X-Pensive Winos, e considerado pelo próprio Watts como um herdeiro direto, estivesse nas baquetas. Quando o segundo single veio, o belo gospel “Sweet Sounds Of Heaven”, já nem lembrava disso, tanto pela competência de Jordan, como pela presença de dois convidados: Stevie Wonder, no piano, e Lady Gaga, nos vocais de apoio. É uma dessas inequívocas canções lentas dos Stones, como várias outras que já fizeram, mas talvez seja um de seus primeiros arranjos gospel, com um instrumental lindo e homenageando um dos afluentes mais caudalosos de sua própria gênese blues’n’roll.
O resto do álbum não fica atrás. Se “Mess It Up” fosse o primeiro single, eu seria arrebatado logo de cara. Outra típica canção dos Stones, na modalidade rock-com-riffs-matadores, ela é uma das que traz a bateria de Watts, gravada logo no início das sessões para o álbum. O refrão é perfeito, o andamento é maravilhoso e é absolutamente stoniana, sob todos os pontos de vista e interpretação. “Depending On You” é uma semi-balada que vai crescendo num arranjo meio folk rock, que funciona lindamente. “Whole Wide World” é outro exemplo da marca registrada dos sujeitos, mas lembra um pouco de sua fase noventista, especialmente o que fizeram no ótimo álbum “Voodoo Lounge”, de 1994. “Live By The Sword” tem participação de Elton John no piano, o retorno do camarada Bill Wyman no baixo, e uma letra raivosa de Mick, com ótimo arranjo e potência de sobra para arrebatar um palco. Outro momento sensacional é “Bite My Head Off”, com participação de Paul McCartney no baixo, engolindo todos os baixistas de duplas roqueirinhas modernoides, com uma distorção infernal e uma linha melódica arrasadora. Macca sempre foi às do instrumento. No fecho, a cover ancestral de Muddy Waters como uma certidão de nascimento: “Rolling Stone Blues”.
“Hackney Diamonds” não tem faixa ruim. Também não é o melhor álbum dos Stones desde x ou y, mas é um álbum dos Stones que apaga a lembrança de qualquer disco que tenham gravado anteriormente. Não dá vontade de comparar suas faixas com nada feito em outra década, pelo contrário: ele fornece uma confortável sensação de que estamos vivos, ouvindo Rolling Stones, como se isso fosse uma constante universal qualquer. Talvez seja o que Mick, Keith e Ron tenham aspirado.
Ouça primeiro: “Bite My Head Off”, “Live By The Sword”, “Depending On You”, “Whole Wide World”, “Mess It Up”, “Sweet Sounds Of Heaven”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.