Polícia e escola para quem precisa
Eu nem ia escrever nada sobre o 35º aniversário do terceiro álbum dos Titãs, justo por vê-lo como um ponto pacífico no rock nacional. “Cabeça…” é uma polaroide de seu tempo, um salto qualitativo em termos de produção, divisor de águas no uso do estúdio no rock oitentista e o ponto em que os Titãs conseguiram imprimir sua marca pessoal com pluralidade bastante para poder seguir como uma das três mais importantes formações daquele tempo. Se o grupo não conseguira isso na estreia, muito engraçadinha e leve, ou em “Televisão”, sensacional, mas prejudicado pela produção equivocada, em “Cabeça” o bicho pega. Cada titã dá sua contribuição, várias canções entraram para o cânon de sucessos absolutos do estilo e da banda e…bem, aí é que entra o problema. Até agora há pouco, este era um álbum, ou melhor, uma obra de arte inequivocamente antissistema, certo? Errado. Pelo menos para alguns que caminham nessa terra, com os dinossauros costumavam fazer. Vejamos.
Foi no Twitter que tal dúvida foi suscitada. A banda, hoje restrita a um trio, formado por Branco Melo, Sérgio Brito e Tony Belotto, surgiu num comunicado do jornal Folha de São Paulo, no qual falava contra o atual governo federal, pedindo um “basta” sobre a questão das mortes na pandemia, da roubalheira indiscriminada, da questão do superfaturamento na compra da Covaxin e, bem, motivos não faltam para se pedir um basta. O fato é que, logo abaixo do comunicado, os fãs começaram a se manifestar e não tardou a surgir gente meio perplexa com o fato dos Titãs serem “a banda que escreveu ‘Polícia'”. Sim. Para essas pessoas, a canção era, até o comunicado do grupo, um hino pró-polícia. Isso mesmo que você está lendo. Na mente dessas pessoas, a letra, que é indubitavelmente anti-polícia e escrita após a prisão de Arnaldo Antunes por posse de drogas, era lida e cantada até então como se fosse uma exaltação à corporação. Eu fiquei realmente incomodado, erro meu, claro. Mas convido vocês a lerem a letra, de autoria de Tony Belotto, que reproduzo abaixo.
Dizem que ela existe pra ajudar
Dizem que ela existe pra proteger
Eu sei que ela pode te parar
Eu sei que ela pode te prender
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Dizem pra você obedecer
Dizem pra você responder
Dizem pra você cooperar
Dizem pra você respeitar
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Dizem que ela existe pra ajudar
Dizem que ela existe pra proteger
Eu sei que ela pode te parar
Eu sei que ela pode te prender
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Dizem pra você obedecer
Dizem pra você responder
Dizem pra você cooperar
Dizem pra você respeitar
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Incrível que uma letra como esta possa ser interpretada de forma exatamente oposta à intenção de seu autor, né? Mas, vamos fazer um exercício. E se, por acaso, “Polícia” fosse uma canção pró-polícia? Como ela existiria no contexto do álbum? Vejamos as canções:
– “Cabeça Dinossauro” – uma porradaria nonsense de 2:20 minutos.
– “AA UU” – fez sucesso nas rádios e mostra a idiotia das pessoas, cuja letra diz “estou ficando louco de tanto gritar”, o que suscita alguém em estado de desconforto/agonia/desespero.
– “Igreja” – “eu não gosto de padre, eu não gosto de madre, eu não gosto de frei”. Este verso é autoexplicativo, certo?
– “Polícia” – ora olha ela aqui.
– “Estado Violência” – o título deveria bastar, uma vez que a polícia é um instrumento de repressão estatal, mas, ok, seria exigir demais do público. Vejamos então “sinto no meu corpo a dor que me angustia, a lei ao meu redor, a lei que eu não queria. Estado violência, estado hipocrisia”.
– “A Face do Destruidor” – “o destruidor não pode mais construir porque o construtor não constrói”. Trinta segundos de loucura hardcore.
– “Porrada” – “porrada nos caras que não fazem nada, porrada, porrada”.
– “Tô Cansado” – “tô cansado do meu cabelo, tô cansado de moralismo, tô cansado de bacanal, tô cansado de descansar” – estes são versos da letra, mais uma que acena para a exaustão da vida das pessoas nas cidades, no país.
– “Bichos Escrotos” – bem, outra letra que deveria ser explicativa, no caso, uma ode a uma corja de péssimas criaturas que emerge dos esgotos, substituindo bichos fofinhos. E ainda tem um “vão se foder, porque aqui na face da Terra, só bicho escroto é que vai ter”. A letra foi censurada pelo estado. Aquele da polícia, lembra?
– “Família” – talvez a única faixa light de todo o álbum. Legal, reggae, bem ao estilo do baixista Nando Reis, que a canta.
– “Homem Primata” – outra crítica ao homem de 1986, ao capitalismo, à exacerbação da vida urbana, ao ataque à ecologia, enfim…ao sistema.
Sendo assim, como estas canções antissistema poderiam viver junto a uma eventual exaltação à polícia, gente? Uma coisa é o fã tiozão de Roger Waters dizer que vai registrar um BO contra o ex-Pink Floyd após um show no qual foi exposto um enorme ELE NÃO porque não sabe lhufas de inglês básico. Outra é essa horda de ignorantes totais, burros funcionais, se manifestando por conta de uma letra explícita em português claro e simples.
Bem, eu lamento que a gente celebre o aniversário de um disco tão importante para o rock nacional mencionando este fato estapafúrdio, mas é bom ver que os Titãs honraram sua tradição de ser uma banda antissistema. E o disco, bem, ele é um dos mais importantes trabalhos de um grupo brasileiro em todos os tempos. Justo porque é antissistema.
colaborou Lia Amancio
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Sinceramente aqueles comentários só podem ser ironia ou pura trollagem, inacreditável como o jovem ” roquista “, foram fisgados pela extrema direita
Rapaz, eu não ponho minha mão no fogo. Mesmo.
Sensacional! Este exercício é fundamental. O que será desses ‘roquistas’ agora?
Eu que agradeço!
Esse é o artigo que a gente precisava em 2021. Obrigado. De coração.